O rapaz veio por causa da sarna que infesta a cadeia. Depois de orientá-lo, perguntei quanto tempo faltava para cantar a liberdade. Respondeu que recebera 10 anos num dos processos e oito no outro.
Tinha participado dos julgamentos do tribunal do crime, que condenaram dois homens à pena capital: um deles estuprara uma menina de cinco anos; o outro era pai de uma adolescente de 13 anos, de quem ele abusava desde pequena, até dar à luz a um menino, filho do próprio avô.
O rapaz se julgava injustiçado: "Perguntei pro juiz quantos anos de cadeia pegaria cada um dos estupradores. Ele disse que seriam seis anos. O senhor acha que está certo, seis anos para eles e 18 para mim, que livrei a sociedade de dois seres desumanos?".
Nos 14 anos nos quais atendi na Penitenciária Feminina de São Paulo, cansei de ouvir histórias de prisioneiras estupradas ainda na infância, por padrastos, pais, avôs, tios e amigos da família. Nunca imaginei que violência sexual contra crianças fosse tão frequente em todas as classes sociais, especialmente entre as meninas mais pobres e desprotegidas.
Em 33 anos frequentando cadeias, as maiores atrocidades a que assisti foram perpetradas contra estupradores. Na enfermaria do antigo Carandiru, atendi vários deles torturados com tantos requintes, que as imagens não me saíram da cabeça.
Uma vez perguntei a um preso por que razão matavam estupradores, enquanto respeitavam assassinos de mães e pais de família: "O senhor vai pro motel com uma mulher que está a fim do senhor, põe uma música romântica, toma um uísque e, às vezes, não dá certo. Como esses caras conseguem ter ereção com uma mulher se debatendo, gritando e pedindo pelo amor de Deus? Eles não são como a gente, doutor, são tarados, vão fazer outra vez. Pode ser com uma irmã nossa ou nossa mãe".
Com o título Danos Ocultos do Estupro, a revista Pesquisa, da Fapesp, acabou de publicar uma reportagem assinada por Ricardo Zorzetto a respeito de um estudo coordenado pela psiquiatra Andrea Feijó de Mello, da Unifesp.
O texto parte dos dados estatísticos de 2021, ano em que foram registrados pouco mais de 56 mil casos no Brasil. Três em cada quatro vítimas eram crianças e adolescentes com menos de 14 anos. Esses números, certamente, subestimam a abrangência desse crime — vários trabalhos sugerem que apenas um em cada 10 casos chega ao conhecimento das autoridades.
O sistema de saúde precisa acolher mulheres e crianças violentadas, com profissionais preparados e a longo prazo.
O estudo avaliou o papel da medicação antidepressiva e da psicoterapia em 86 mulheres e 31 adolescentes que desenvolveram estresse pós-traumático depois de violentadas. As principais conclusões foram:
1) No estresse pós-traumático que se instalou como consequência da violência sexual, cerca de 96% das pacientes desenvolveram quadros de depressão.
2) As participantes apresentaram uma resposta incomum nos níveis de dois hormônios associados ao estresse: ACTH (produzido pela glândula pineal, no cérebro) e cortisol (produzido pelas adrenais).
O cortisol é o hormônio liberado nos momentos de perigo iminente, na preparação do corpo para lutar ou fugir. Passada a ameaça, a produção é inibida. No estresse pós-traumático ocorre um desequilíbrio nesse sistema, de modo que os níveis de cortisol permanecem elevados. Nas mulheres estudadas essa elevação ainda foi detectada um ano depois do início da terapia com antidepressivos.
3) Níveis altos de cortisol mantidos por períodos prolongados provocam a liberação de moléculas características de processos inflamatórios em diversos órgãos, inclusive no cérebro. Processos inflamatórios crônicos estão ligados a problemas de saúde física e mental.
4) Muitas das mulheres violentadas apresentaram o fenômeno da revivescência, caracterizado por lembranças e pensamentos invasivos que as fazem reviver a experiência traumática e a ter pesadelos que interferem com a arquitetura do sono.
5) A polissonografia foi realizada em dois momentos: quando a paciente era incluída no estudo e um ano depois. Aquelas que tiveram distúrbios do sono por mais tempo continuaram a apresentar os sintomas do transtorno pós-traumático por períodos mais longos.
O sistema de saúde precisa acolher mulheres e crianças violentadas, em serviços com profissionais preparados para acompanhá-las a longo prazo. As feridas causadas por esse crime repugnante deixam cicatrizes que duram muito, talvez a vida inteira.