As crianças foram relativamente poupadas das formas mais graves da covid. Em seu último número, a revista Nature tenta explicar esse fenômeno.
Parece contraditória essa característica, uma vez que as crianças vivem com o nariz escorrendo, infectadas pelo primeiro vírus respiratório que aparece na escola. A facilidade em contrair resfriados de repetição é atribuída à falta de experiência do sistema imunológico infantil para lidar com mais de 200 vírus causadores de resfriado, entre os quais há outros coronavírus.
Nós, adultos, contamos com a experiência de um sistema imunológico que já entrou em contato com diversos agentes virais, foi capaz de eliminá-los e de guardar suas especificidades moleculares na memória para atacá-los, com muito mais eficiência, num segundo encontro.
Se fôssemos depender exclusivamente da produção de anticorpos e da resposta imune celular, infecções banais teriam colocado nossa vida em risco na mais tenra idade.
Estudos recentes demonstram que as razões pelas quais as crianças parecem defender-se melhor do Sars-CoV-2 guardam relação com a imunidade inata, aquela geneticamente intrínseca à própria constituição do sistema imunológico, pronta a ser mobilizada contra qualquer microrganismo invasor, ainda que não exista experiência prévia.
Nas primeiras fases da vida, esse braço da resposta é o que assegura nossa sobrevivência num mundo povoado por bactérias, fungos e vírus. Se fôssemos depender exclusivamente da produção de anticorpos e da resposta imune celular, passos que demandam pelo menos alguns dias, infecções banais teriam colocado nossa vida em risco na mais tenra idade.
Como explicar que as crianças sejam mais eficientes do que os adultos para eliminar o Sars-CoV-2?
No início da pandemia, pensávamos que a probabilidade de adquirir a infeção era menor entre elas. Embora aquelas com menos de 10 anos tenham risco um pouco mais baixo de fato, as demais correm risco semelhante ao dos mais velhos.
Neste momento, a Academia Americana de Pediatria estima que 15% dos casos nos Estados Unidos ocorram em menores de 21 anos, número que corresponde a cerca de 5 milhões de americanos.
Na Índia, um inquérito que testou a presença de anticorpos contra o coronavírus na população, revelou que dois terços dos indianos já haviam sido infectados. Naqueles entre seis e 17 anos, mais da metade apresentava anticorpos.
A primeira explicação para a resistência das crianças foi a de que o vírus não conseguiria se replicar nas fossas nasais e nas vias aéreas com a facilidade com que o faz nos adultos. Publicações posteriores, no entanto, demostraram que a carga viral nessas áreas é semelhante à dos adultos, principalmente nas fases iniciais infecção.
A disseminação da epidemia nos Estados Unidos e em outras partes do mundo mostra que a participação das crianças no pool de pessoas infectadas e hospitalizadas está aumentando. Esse fenômeno pode ser explicado pelo aparecimento da variante Delta e pelo fato de que a proporção de adultos vacinados é bem mais alta.
Em relação aos adultos infectados, pacientes pediátricos apresentam taxas mais baixas de anticorpos neutralizantes (imunidade humoral) e menor número de linfócitos T (imunidade celular) dirigidos contra o vírus. As crianças, entretanto, têm concentrações mais altas de interferon-gama e interleucina-17, proteínas que alertam a imunidade inata da chegada de um patógeno.
Crianças com defeitos imunológicos que afetam a produção de anticorpos e/ou de linfócitos T não desenvolvem quadros mais graves de covid-19. Os casos mais graves ocorrem justamente naquelas com imunidade inata defeituosa ou malformada.
Outros pesquisadores têm defendido que as diferenças mais importantes estariam na programação da resposta inflamatória contra o coronavírus, processo que envolve a produção de microcoágulos causadores de tromboses e embolias nos adultos. Como as crianças formam coágulos com mais dificuldade, ficariam protegidas.
Infelizmente, nem todas as crianças evoluem bem. Um estudo publicado como preprint mostrou que 14% de crianças e adolescentes com teste positivo para o Sars-CoV-2, queixam-se de sintomas múltiplos três meses depois do diagnóstico. E, cerca de três em cada 10 mil infectadas apresentam uma forma grave denominada síndrome inflamatória sistêmica, que se instala por volta de um mês depois da infecção inicial e provoca insuficiência cardíaca, dores abdominais e conjuntivite. O quadro pulmonar é mais limitado.
Felizmente, apesar dessas possíveis complicações, a evolução da doença é muito mais benigna nas crianças.