Saúde não é apenas a vida sem doença. O conceito de doença não é simples como parece, porque faz parte de um contexto social em que os médicos criam teorias, descrevem sinais e sintomas e métodos de tratamento; os pacientes procuram explicações e soluções para os males dos quais padecem; e as autoridades estudam políticas para reduzir o impacto na economia e na saúde pública.
A história da medicina mostra que a intersecção desses interesses tem-se alterado no decorrer dos séculos.
Numa análise das publicações dos primeiros números da revista The New England Journal of Medicine, um grupo de Harvard reuniu artigos publicados há 200 anos sobre entidades estranhas como apoplexia, neurastenia, cegueira e fraturas ósseas em pessoas que receberam o impacto do vento de balas de canhão que explodiram longe delas. Há descrições de morte por combustão espontânea em bebedores de conhaque, por ingestão de água gelada ou por febres de vários tipos em pessoas que nunca tiveram febre.
Mudanças na sociedade redefinem o que é doença. Homossexualidade e masturbação deixaram de sê-lo. Fibromialgia e síndrome da fadiga crônica passaram a ser.
Em 1912, um editorial da revista defende a eugenia: "Talvez em 1993, quando todas as doenças passíveis de prevenção tiverem sido erradicadas, quando a natureza e a cura do câncer tiverem sido descobertas e quando medidas eugênicas tiverem colaborado com a evolução para eliminar os incapazes, nossos sucessores olharão para estas páginas com ar de superioridade".
Ainda em 1912, a revista publicou as primeiras preocupações com o surgimento de "pessoas com hábitos de vida extremamente indolentes, que não andam mais do que os passos necessários para ir do escritório ao elevador, do elevador para a sala de jantar ou para o quarto e de volta para o automóvel".
Durante o século 20, enfermidades cardiovasculares, câncer, diabetes e outras condições crônicas se tornaram prevalentes, embora ainda emergissem enfermidades infecciosas: encefalite equina, kuru, ebola, aids.
Em 2005, foi levantada a hipótese de que a epidemia de obesidade prevista em 1912 reduzirá a expectativa de vida da população americana, pela primeira vez, nos últimos 100 anos.
Qualquer tentativa de definir doença precisa levar em conta a complexidade.
Doenças afetam determinados grupos, estão associadas a fatores de risco e provocam sinais e sintomas característicos. Elas geram interesses que envolvem pacientes, profissionais de saúde e as instituições em que trabalham e as fontes pagadoras.
Mais do que um problema pessoal, doença é um processo antes de tudo social.
Enfermidades novas estão associadas a causas novas (acidentes de moto, poluição), novos comportamentos (fumo, abuso de drogas) e mesmo à alteração da história natural por meio do tratamento (diabetes, aids, infarto).
Mudanças sociais e ambientais aumentaram a prevalência de enfermidades raras no passado: infarto do miocárdio, câncer de pulmão, obesidade grave.
Novos critérios e métodos de diagnóstico permitiram evidenciar outras, que não eram identificadas: depressão, síndrome metabólica.
Transformações na sociedade redefinem o que é doença. Homossexualidade e masturbação deixaram de sê-lo. Fibromialgia e síndrome da fadiga crônica passaram a ser consideradas, graças à pressão das associações de pacientes.
Apesar dessas modificações, uma característica se mantém desde os primórdios da humanidade: a influência nefasta das disparidades sociais no acesso aos serviços de saúde, fenômeno ubíquo em todas as sociedades.
Doenças são processos dinâmicos que coevoluem com a Medicina. Quando as vacinas e os antibióticos começaram a combater as infecções, aumentou a incidência de ataques cardíacos, derrames cerebrais e diabetes.
Assim que tivermos sucesso no controle dessas enfermidades, haverá aumento na prevalência dos transtornos neuropsiquiátricos, desafio que a medicina está despreparada para enfrentar.
Infelizmente, os sistemas de saúde estão mais preparados para as doenças do passado, não para lidar com aquelas do presente ou do futuro.