O inigualável humorista Jô Soares morreu aos 84 anos. Com ele foi-se uma de suas mais notáveis criações. Um personagem que habitou o dia-a-dia da Seleção durante as Copas de 1982 e 1986. Se você tem mais de 40 anos, talvez não lembre do Zé da Galera ou acredite que, sim, é possível fazer uma crítica forte, direta e de enorme repercussão, ao ponto de suscitar longos debates do Oiapoque ao Chuí sem uma gota sequer de ódio. Sem ofensa. Sem desqualificação. Sem lacração. Sem cancelamento. Sem bullying. Sem gritaria. Só com bom humor e riso. O Brasil esperava ansiosamente as noites de segunda-feira. Era quando Jô estrelava o Viva o Gordo, seu programa semanal na Globo em que interpretava dezenas de tipos, um mais engraçado do que o outro. Um deles era o Zé da Galera.
Zé da Galera lutava contra a extinção dos ponteiros e, por eles, atazanava a vida do técnico Telê Santana. Jô o aposentou, mas o Zé ficaria feliz se visse a ressurreição deles, agora rebatizados de "extremas". Observe: eles estão por aí, aos montes. A maioria dos clubes e seleções da Europa tem dois deles. Alguns põem logo três. Não era assim no mundo daquele sujeito rechonchudo, bigodinho ralo, palito no canto da boca e regata branca por baixo da camisa desabotoada. Antes, um parêntese. A década de 1980 trazia uma tendência. Os técnicos tiravam atacantes em nome de meias. Depois, os meias perderam espaço para volantes de marcação. Parecia um plano maquiavélico. Esse viés defensivo durou alguns ciclos de Copa até o cenário mudar rumo a valorização dos extremas, como hoje. O fato é que a trindade ponteiro-direito, centroavante e ponteiro-esquerdo, divina para o Zé da Galera e muitos torcedores, estava ameaçada pelo Telê.
O grande Inter de Rubens Minelli foi bicampeão brasileiro com Valdomiro, Flávio e Lula em 1975. No ano seguinte, sai Flávio, entra Dario - mas os ponteiros permanecem. Já no tri invicto de 1979, com Ênio Andrade na casamata, o debate que incendiava o Sala de Redação era o quadrado de meio-campo. Como acomodar Batista, Falcão, Jair e Mário Sérgio no mesmo time? Sacrificando um ponteiro, claro, até porque em nome desse quadrado dava para abrir mão de qualquer um, do goleiro ao Papa, passando pela geometria inteira. Mas, naquela época, a ideia em si do quarteto, abstraindo a exceção que era o timaço do Inter, parecia questionável. Tratava-se de manter o futebol brasileiro como sempre foi, ofensivo e romântico, e não deixá-lo sucumbir às trevas das retrancas europeias.
Esse era o imaginário, sem o aprendizado e as leituras de hoje. Os alemães, mesmo já campeões do mundo, eram força e organização. Os ingleses, espremendo bem, reduziam-se à bola áerea FC. E assim por diante, muito antes do 7 a 1 e da Premier League. Na Seleção que se preparava para a Copa de 1982 e observada de perto pelo Zé da Galera, Telê tinha Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. E o sagrado ponteiro? Só um, Éder, na esquerda. Tinha de ter outro na direita também. O ótimo Paulo Isidoro, que jogou no Grêmio, era o mais perto disso. Durante a Copa, Isidoro entrava no lugar de Serginho Chulapa, por sua vez titular graças a lesão do habilidoso Careca, habilidoso e escolhido por Maradona, no Napoli, como o parceiro de uma vida. Sem Cerezo, na estreia, jogou Dirceu. Ou seja: para entrar um atacante, saía outro - e o Zé da Galera não gostava nada disso. Jô manteve o personagem para 1986, reivindicando Renato, então no Flamengo.
— Bota ponta, Telê! — descabelava-se o Zé agarrado a um orelhão.
Dia desses vi na TV uma reportagem contando que menos de uma centena de orelhões ainda resiste em todo o país. Não lembro de escrever uma crônica tendo de explicar tanto contexto de tempo assim. Puxa vida. Vamos lá. Para ligar de um telefone públco na rua - o orelhão - era preciso comprar fichas redondas de metal do tamanho de uma moeda para destravar o aparelho, e elas duravam alguns minutos. O Brasil esperava com ansiedade pelo Viva o Gordo para ver um homem do povo se meter na escalação da Seleção. Zé da Galera destilava os argumentos com inteligência, sem uma grosseria sequer. Lembrava até que o próprio Telê fora um ponteiro. Incansável na disciplina tática, jogando para o conjunto, ok, mas ainda ponteiro no Fluminense, time do coração de Jô Soares.
— Teu time não é cheio de estrelas, Telê? Estrela tem ponta... Olha o teu banco de reservas: não termina em duas pontas? Então bota ponta, Telê!!
Onde foi exatamente que fomos derrotados e perdemos a capacidade de criticar sem ranço, oferecendo em troca a poderosa e transformadora arma do riso na vida, na política, no grupo de mensagens da família ou no futebol? Saudade do Zé da Galera. E de se pai, Jô Soares.