Os coletes amarelos saíram em fúria pelas ruas de Paris, protestando contra as doações feitas à Catedral de Notre-Dame. Tratou-se, de fato, de algo espantoso – em seis horas, foram levantados um bilhão de euros para as obras de reforma da igreja, que foi em parte consumida por um incêndio, na semana passada. Confesso também ter ficado um pouco chocado. Tanta gente enfrentando a desgraça crua, passando até fome, e as pessoas se mobilizam para ajudar um país que, afinal de contas, é rico.
Ao mesmo tempo, entendo a comoção motivada pela Notre-Dame. As pessoas se comovem com o que lhes diz respeito. Depois do incêndio, você via dezenas de fotos nas redes sociais de gente sorrindo, com a Notre-Dame ao fundo. Essa igreja faz parte da cultura do Ocidente. Logo, faz parte da história pessoal de cada um. Há os que um dia visitaram a igreja, há os que leram o livro de Victor Hugo ou viram filme ou peça a respeito, e há os que apenas sabem de um pedaço do que se passou naquele lugar e, por isso, o respeitam.
A Notre-Dame é importante para as pessoas porque elas a conhecem.
Valores culturais são abstratos. Se você for avaliar uma casa, calculará o tamanho, a localização, a arquitetura, o estado de conservação e chegará a um preço. Mas quanto vale, por exemplo, o romance “O Corcunda de Notre-Dame”, que elevou essa catedral gótica de Paris a celebridade mundial, a ponto de mobilizar até bilionários brasileiros para financiar seus trabalhos de recuperação?
Digamos que, nos tempos de Victor Hugo, houvesse, na França, uma “Lei Rouanet”. Será que ele mereceria o financiamento? Hoje, tenho certeza, você diria que sim. Valeria cada franco investido. Curiosamente, Victor Hugo, em certo momento da vida, recebeu mesmo subvenção estatal, e não se podia dizer que ele fosse necessitado. Ao contrário, era filho de um general que lutou no exército de Napoleão e, ao atingir a maturidade, já gozava de fama e riqueza.
A Lei Rouanet, é verdade, tem seus defeitos. Mas, na essência, é muito boa. Ruim é a cruzada antiintelectual que tem movimentado a sociedade brasileira nos últimos tempos. Quando um país desvaloriza sua cultura, desvaloriza a si próprio e aos seus cidadãos, porque lhes tira as referências que farão parte do seu imaginário. Dá-se o contrário do que aconteceu com a Notre-Dame: o que você não conhece não tem importância para você.
Os brasileiros são pródigos em subtrair os méritos de seus compatriotas. É uma iconoclastia que não tem nada de rebelde – é apenas destrutiva. Um caso ilustre foi Carlos Chagas, o único cientista da história da medicina mundial a descrever inteiramente o ciclo de uma doença infecciosa. Essa façanha foi reconhecida no planeta inteiro. Harvard concedeu-lhe o título de doutor honoris causa e Albert Einstein manifestou sua admiração por Chagas. Mas, quando seu nome foi sugerido para o Prêmio Nobel, foram seus pares brasileiros, além de integrantes do governo, que se posicionaram contra, uns dizendo que a Doença de Chagas nem sequer existia, outros que ele ia ficar muito enfatuado com o prêmio. A Academia Sueca levou esses argumentos em consideração. Afinal, se os próprios brasileiros falavam mal dele, algo havia de errado. Havia mesmo – com os brasileiros.
É fácil ser do contra. É fácil falar mal. É fácil destruir. Construir é bem mais complicado. E reconhecer o mérito alheio exige grandeza.
Mas sou otimista. Sei que um dia chegaremos lá. Vamos enxergar os valores abstratos das coisas imateriais, que, em geral, são as melhores coisas. Vamos compreender que há brasileiros que merecem nosso aplauso, ainda que não concordemos com eles. Vamos, ao invés de ser do contra, destruir e falar mal, construir e reconhecer os grandes. Quando isso acontecerá? É óbvio: quando nós também formos grandes.