O parlamento russo, a Duma, aprovou uma lei que permite ao marido bater na mulher. Mas, atenção, há restrições: não pode deixar marcas e tem de ser uma única vez ao ano.
Segundo os deputados, a lei atende a uma tradição do país. Na Rússia, há um ditado que diz: "Se ele te bate, é sinal de que te ama".
Entre os defensores da proposta, um dos deputados mais entusiasmados não é um deputado: é uma deputada. Uma mulher.
Uma contradição? Nem tanto.
Lembro de Yelena Isinbayeva.
Você sabe: Yelena Isinbayeva, a rainha russa do salto com vara. Já contei que a entrevistei na Olimpíada de Pequim. Os olhos lilases de Yelena ficaram a palmo e meio dos meus. Senti-lhe o hálito de menta e pensei: desta boca pequena só saem aromas de flores e ervas.
Verdade.
Mas saem também besteiras. Yelena defende as leis antigays da Rússia, e justifica:
– Aqui somos assim.
Agora repare: Yelena é uma mulher do mundo. Viaja por todos os continentes, conhece pessoas de todos os lugares. Não é uma camponesa do interior da Geórgia, que aceita apanhar por "amor". Como se explica Yelena cevar ideias tão antigas?
A resposta caberá, também, para explicar a bizarra lei que dá ao homem o direito de bater na mulher.
É o Estado.
Em outubro, será completado o centenário da Revolução Bolchevique. O Estado se tornou dono de tudo, na Rússia, desde que Lênin chegou à Estação Finlândia, em 1917, até o Muro de Berlim ser derrubado, no fim dos anos 1980. Muito tempo.
Quando o Estado é tão grande, o indivíduo se apequena. A noção de direitos, deveres e vida em sociedade fica terceirizada. Se o Estado é responsável por todos os regramentos da vida, você não toma iniciativa nenhuma. Porque é desnecessário e porque é inútil.
É o princípio da educação infantil. Quando o Bernardo se atrapalha em alguma tarefa e a Marcinha, boa mãe que é, vai lá e faz para ele, eu reclamo:
– Deixa o guri crescer!
É assim. Você tem de orientar o filho e, ao mesmo tempo, estimular sua independência.
Quando você faz tudo para o seu filho, quando dá tudo o que ele quer, quando só lhe diz sim, ele se tornará mimado, birrento e infeliz. E mais: ingrato.
Há que se construir o equilíbrio entre cuidado e disciplina.
Da mesma forma, a sociedade. Por que a comunidade se organizará para o que quer que seja se o Estado faz tudo, ou diz que fará tudo?
Uma sociedade amassada pelo Estado age pouco e pensa quase nada. Dela resultam indivíduos embrutecidos, que, como crianças mimadas, são birrentos e infelizes.
O cidadão que toma a iniciativa e valoriza sua liberdade individual e sua privacidade valoriza também a liberdade individual e a privacidade alheias. Porque ele sabe que só será respeitado se respeitar.
Em países como a Rússia e o Brasil, o Estado é uma entidade situada acima do cidadão. O cidadão espera que o Estado resolva os seus problemas. Assim, qualquer mobilização só é feita para exigir soluções, não para encontrá-las. É cada um por si e o Estado por todos. Eis o fermento do egoísmo e da tacanhice, do preconceito e da violência.
Mas talvez este momento de crise do Estado brasileiro seja positivo. Talvez a sociedade compreenda que é preciso fazer por si própria para, enfim, crescer.