Uma das melhores novidades da televisão brasileira em 2021 é uma novela de quase meio século atrás: O Bem-Amado (1973), disponível na Globoplay desde fevereiro.
No final do ano passado, o imorrível coronel Odorico Paraguaçu já havia reencarnado como meme. Nem precisava ser tão literal a semelhança com um certo político de hoje em dia para que a atualidade do personagem de Dias Gomes ficasse evidente, mas na cena que caiu na rede o prefeito de Sucupira admite que andou conspirando para impedir a chegada de um lote de vacinas à população. Quando o assessor Dirceu Borboleta comenta que o plano é desumano e muita gente vai morrer por causa dele, Odorico, o genocida, rebate: “E daí, seu Dirceu?”.
Para quem está assistindo à novela agora pela primeira vez, os discursos vazios, a mentalidade desenvolvimentista predatória, os ataques a adversários políticos e jornalistas e a ausência completa de escrúpulos podem soar familiares, mas comparar Odorico Paraguaçu com o atual presidente da República talvez seja injusto – com o personagem da ficção, bem entendido.
Pra começo de conversa, Odorico tinha mais vocabulário. É verdade que, no esforço para falar bonito, o prefeito de Sucupira acabava torturando nossa inculta e bela Flor do Lácio, mas não se pode dizer que seu repertório fosse limitado, muito menos chulo. Odorico sabia fazer discursos de improviso e falava com segurança, mesmo quando dizia bobagens. No tocante a isso daí (expressão oral) até se arriscava no inglês. Em uma histórica visita à ONU, foi capaz de pronunciar algumas palavras sem gaguejar ou recorrer ao teleprompter: “Let’s put aside the howevers and go straight to the endlessly” (“Vamos deixar de lado os entretantos e partir logo para os finalmentes”).
Homem atrás do seu tempo, como todos os que cultivam a nostalgia do mandonismo despudorado e sem-vergonhista, Odorico praticava aquilo que hoje costuma ser chamado de “necropolítica”: seu único projeto de governo, além de garantir a reeleição, era povoar o cemitério local com a maior quantidade possível de conterrâneos.
Com relação às novas encarnações do necropolitismo nacional, Odorico leva a imensa vantagem de ser engraçado. E de mentirinha.