A descoberta de fraudes na Lei Rouanet é talvez um golpe ainda mais duro para a cultura brasileira do que teria sido a extinção do Ministério da Cultura. Estruturas burocráticas, quando funcionam, independem do estatuto simbólico que se possa atribuir a elas – e muitos países vivem muito bem sem ministérios que representem suas áreas estratégicas. Corrigir desvios, aperfeiçoar e mesmo ampliar o alcance das leis de incentivo é muito mais importante para fortalecer a cultura de um país do que um ministério. Isso porque, na maioria dos países, o setor cultural não sobrevive apenas obedecendo às leis de mercado, precisando de apoio público e privado para experimentar, crescer e se fortalecer. Articular essas duas fontes de financiamento é a função das leis de incentivo, e o modelo mais perto do operacional que o Brasil já teve é a Lei Rouanet, criada há 25 anos e aplicada por diferentes governos e políticas culturais. A Operação Boca-Livre, que investiga fraudes de até R$ 180 milhões na Rouanet, deve agravar ainda mais a má vontade com um mecanismo de financiamento que, apesar de muitas distorções, ainda tem mais méritos do que falhas.
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Entre o ministério e a secretaria, qual o poder da Cultura?
Não é o único problema que artistas e gestores culturais estão enfrentando. Em um ambiente polarizado, em que muitas pessoas confundem a obra dos artistas com as suas posições políticas, o setor cultural tem estado sob ataque nos últimos meses. A grotesca percepção de que artistas são vagabundos e de que investir em Cultura é jogar dinheiro fora ganhou espaço nas redes sociais e nas conversas de táxi, revelando que anos de descaso com educação são capazes de corroer o próprio tecido que nos constitui como nação: a cultura, em todas as suas manifestações, e seu valor simbólico.
O estrago está feito e só nos resta torcer para que, em meio a esta tempestade perfeita de crises, a cultura brasileira consiga sobreviver a mais este cataclisma, corrigindo o que tem que ser corrigido nas leis de incentivo e restaurando a confiança da sociedade. Que a punição a pessoas e empresas envolvidas em projetos que nunca saíram do papel, em superfaturamento, em notas fiscais fictícias e em todas as outras tramóias que começaram a vir a público na manhã de hoje seja exemplar e dura. Tratam-se de criminosos que roubaram o país duas vezes: privatizando o dinheiro público destinado à cultura e fragilizando ainda mais o setor.