Enquanto eu escrevo, ainda existem milhares de moradores gaúchos sem luz, sem água, sem internet, sem telefone, no combo completo de impotência das concessionárias, no apagão dos últimos dias.
Os consumidores já amargam 48 horas de ausência de reposição dos serviços essenciais, e começam a se preocupar com a possibilidade de perder o que está na geladeira e no congelador.
A pane seca que vivemos com as sucessivas tempestades demonstra o quanto somos enganados pela aparência. Toda a tecnologia, todo o conforto, toda a segurança, todos os aparelhos interligados por uma voz de comando não servem para nada diante de uma tomada de três pinos desprovida de corrente elétrica.
No fundo, não saímos das cavernas, apenas adaptamos as pedras para que fossem mais atraentes.
Testemunhamos, atônitos, filas gigantescas se formando nos shoppings e nos supermercados. Eram clientes procurando por tomada. Não queriam comprar um interruptor avulso, buscavam desesperadamente uma tomada na parede para carregar seu celular e retomar a conexão com o mundo.
Tão somente ansiavam por uma carguinha, por alguns minutos de maçã mordida ou de Android piscando, como viciados numa droga pesada.
Parecia Black Friday, Juízo Final, queima de estoque. Parecia um formigueiro, uma colmeia em busca agônica e atrapalhada por buracos, por fontes de energia.
Além de descobrir da pior forma que o DMAE não conta com geradores emergenciais em suas seis redes de abastecimento, percebemos que o celular, que se mostrava tão portátil, tão moderno, tão independente, tão invencível, com as suas quatro câmeras, com o seu 5G, com o seu zoom periscópico, com o seu multiprocessador, com os seus 512 GB de memória, é uma variação do telefone fixo.
Não deixa de ser um telefone fixo, que exige a renovação diária da bateria.
Seus fios invisíveis necessitam permanecer grudados no concreto, como antes, como nos velhos tempos.
Se o telefone emudecia com a falta de luz, o celular também apaga. A única diferença é que ele demora um dia para morrer.
O que nos salvou nesse período de sufoco e crise não foi aquele laptop de mão — longe do qual achávamos que não saberíamos sobreviver —, aquele ponto de luz onde depositamos as expectativas de nosso futuro, onde concentramos os nossos dados e contatos, aquele aparelho de estimação que muitos se privam do básico para comprar, que muitos matam para ter, que muitos morrem para não entregar em assalto.
O que nos confortou na escassez esteve representado na antiga solidariedade, na off-line solidariedade, na artesanal solidariedade.
Predominou uma comovente rede de apoio nos bairros.
Vizinhos ofereceram caronas, mudaram sua rota devido à dificuldade de conseguir ônibus, ou metrô, ou carros de aplicativos.
Circunstantes suspenderam o egoísmo de seus caminhos pessoais e ajudaram na limpeza das ruas, interrompidas pela queda das árvores.
Parentes emprestaram a casa para banho, para hospedagem, para seus familiares seguirem com o trabalho remoto.
Alcançou-se um teto, ou um prato de comida, ou um agasalho, ou um rodo, ou um balde, ou uma escada.
Não houve jeito de desligar a solidariedade.
A epifania que surge das profundezas do pântano gaúcho, da nossa existência precária, é que só podemos evoluir pela nossa humanidade.