Na minha infância, criança mexia no fogão, criança lavava a louça, criança varria o pátio, criança embarcava sozinha em ônibus, criança ia à escola desacompanhada e criança fazia o mercadinho.
Nenhum adulto nos poupava da divisão das responsabilidades.
Eu vinha a ser o encarregado das aquisições de última hora no armazém do Seu Alencar, na esquina da rua Guaporé com a Lajeado, no bairro Petrópolis, a duas quadras incompletas de casa.
Pela pressa de me livrar da tarefa, não anotava o que minha mãe queria. Falhava em decorar os itens de reforço da geladeira e da despensa.
Não foram poucas as vezes em que ela solicitava pêssego e eu aparecia com nectarina — “olho da cara” —, em que ela esperava por alface e eu chegava com rúcula — “o dobro do preço”.
Devido à minha confusão costumeira, em vez de colher agradecimentos, ainda ganhava reprimendas.
— Assim teremos que vender a casa para pagar a caderneta no fim do mês — os pais me assustavam.
As vendas se baseavam no fiado de palavras, não pagávamos com dinheiro no ato. Anotavam-se as compras eventuais para acertar no momento do recebimento do salário. O fiado era o Pix na época.
Os pedidos formavam vizinhanças em minha cabeça, com os jardins colados, sem as aparas de muros e cercas.
Num finzinho de tarde, parei novamente na frente do balcão de madeira com a missão de buscar o pão e a sobremesa, já que tínhamos visita.
Ficava na ponta dos pés para ver e ser visto.
A balconista me encarava com o seu silêncio tenso enquanto eu resgatava, dos remotos ecos da montanha da memória, a encomenda materna.
Lembrei-me do pão de meio quilo. Mas e o doce? Qual era o doce? Recordava que havia merengue na receita, mas não surgia o nome. Nem existia uma vitrine para descobrir pela aparência o produto esquecido.
Na ânsia de resolver logo, pressionado pelos cochichos e respirações sôfregas da fila aumentando atrás de mim, falei alto:
— Me dá um bocejo?
A moça, intrigada, rebateu a esquisitice:
— Bocejo, meu filho?
As pessoas só usavam “meu filho” em momentos de apuro, de socorro. Seguravam imediatamente o cliente aflito no colo da linguagem.
A freguesia começou a rir. Mas rir ajudando, rir me amparando, rir tentando decifrar o enigma. Criança tem os seus descontos de conduta.
— Não seria sonho?
— Não, não, não!
— Não seria papo de anjo?
— Não, não, não!
Já estava determinado a apanhar qualquer coisa e sair correndo dali. Já estava com saudade dos meus embaraços com nectarina e rúcula.
Dez minutos depois, Seu Alencar, o dono do estabelecimento, preocupado em dispersar a multidão, gritou do fundo dos corredores:
— A Dona Maria sempre leva suspiro.
— Sim, sim, sim: suspiro! — eu concordei.
Fiquei conhecido como o piá que comprava bocejos no armazém. O apelido foi meu pesadelo até a adolescência.