Quando uma lâmpada está prestes a queimar, ela brilha ainda mais forte. Não sei se você já notou. Parece que ela concentra a sua energia, faz um esforço de claridade, ilumina por duas lâmpadas.
Eu compareci na despedida de Milton Nascimento no Mineirão, no domingo (13), em Belo Horizonte (MG). Foi lindo e triste, tristemente alegre. Minha esposa, ao meu lado, chorava e ria ao mesmo tempo, deixando escapar um sorriso dentro do seu choro.
A cada canção, eu temia que fosse a última música cantada por Milton. Desejava ouvir e não desejava. Curiosidade e apego duelavam em meus pensamentos.
Nunca tive tanta saudade na presença de alguém. Testemunhava o capítulo final da maior voz que o Brasil já ouviu, o timbre mais próximo dos anjos que já passou por aqui, com 43 álbuns e cinco prêmios Grammy.
Você não escuta Milton, seus ouvidos são abençoados por ele.
A turnê — que contou com 37 apresentações — recebeu o batismo de A Última Sessão de Música em homenagem ao cinema, que determinou a vocação desse carioca de nascimento e mineiro de coração. Ele decidiu ser compositor e músico profissional depois de ver o filme Jules e Jim (1962), de François Truffaut. Diz a lenda que, acompanhado de Márcio Borges, assistiu à produção francesa em várias sessões seguidas, apaixonando-se pela atriz Jeanne Moreau.
O feitiço que ele sentiu com Truffaut e Moreau de repetir o filme incansavelmente é o mesmo pasmo que experimentamos com ele.
Naquela noite estrelada pelas luzes do celular, buscávamos trocar o bis pela saideira, pela esperança de ficar mais um pouco perto do calor de sua boca, do lampejo de seu assobio.
Difícil se desligar de quem é único, raro, insubstituível. Eu não queria que o espetáculo acabasse. Nem eu, nem as 60 mil pessoas no estádio.
Mas, simultaneamente, não poderia haver desfecho mais glorioso para 60 anos de carreira. Famílias inteiras faziam coro com Maria, Maria, Encontros e Despedidas, Coração de Estudante e Travessia. Não cantavam junto, gritavam toda estrofe.
Só aquele vozeirão teve o poder de transformar letras altamente elaboradas e poéticas em canções populares, como Um Girassol da Cor de seu Cabelo (Lô Borges e Márcio Borges):
“O meu pensamento tem a cor de seu vestido. / Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo? / O meu pensamento tem a cor de seu vestido. / Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo? / O meu pensamento tem a cor de seu vestido. / Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?”.
Lá acenava para nós Milton, lúcido aos 80 anos, sentadinho na humildade da velhice, com sua boina, com seu poncho colorido, escoltado pelos seus amigos inseparáveis do Clube da Esquina (Toninho Horta, Wagner Tiso, Beto Guedes e Lô Borges), derramando lágrimas por Gal Costa, falando “Eu te amo” para Fernando Brant (falecido há sete anos), jurando lealdade a Elis Regina, recebendo a imensa ternura do público em vida.
Nos letreiros do fim de abastada trajetória, veio aquela sensação de que estamos envelhecendo, de que nossos ídolos estão fechando as cortinas, mas também a certeza de que algumas composições são eternas e facilitam os nossos relacionamentos. Facilitam a nossa emoção. Facilitam as nossas palavras diante das dificuldades de nomear a vida.
Os refletores do Mineirão não deram conta do fulgor da lâmpada de Bituca se apagando. O artista foi aonde o seu povo estava, até o derradeiro piscar.
Seu povo, para sempre.