Imagine a seguinte situação. Você tem uma filha alegre e divertida e, aos poucos, ela vai ficando fechada, retraída. A menina que brincava e ria, agora está quietinha pelos cantos. Aos 10 anos, quando as demais estão na rua, ela está trancada em casa. Não quer sair. Não quer contato com ninguém. Se assusta com qualquer coisinha. Você nota que ela passa a ter asco do tio, um senhorzinho que parece tão legal. Quando ele chega com a família para a visita do final de semana, a guria fica ainda mais amedrontada. Vocês conversam e ela simplesmente diz que não tem nada. Passa um tempo e a criança começa a ter problemas de saúde que nem ela, nem você entende. Ligando os pontos, ninguém quer acreditar no que aconteceu. No médico, o diagnóstico é claríssimo e uma bomba para a família: ela está grávida.
Doeu ler isso? Pareceu agressivo? Pois doeu muito escrever essas linhas. Deu nojo do personagem fictício. Deu pena dessa menininha. Me imaginei no lugar dela e no da mãe dela. Essa história é a realidade de muitas crianças e adolescentes. No Brasil, em 2022, 76% dos casos de estupro registrados foram contra menores de 14 anos. Em números totais, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 52 mil abusos contra esse grupo. Isso sem contar os que não são registrados por vários motivos, como a perpetuação do abuso, normalmente por alguém da família ou muito próximo e que ameaça a vítima, seja porque a própria família acoberta, seja por vergonha ou para tentar proteger a criança de mais sofrimento.
Haveria muitas formas de exemplificar a ineficiência ou a desconexão do Congresso com temas relevantes para o País, mas escolhi exatamente o projeto de lei que equipara aborto após 22 semanas de gestação a homicídio. Não se engane ao achar que o projeto que ganhou notoriedade nos últimos dias foi pensando pelo bem de alguma criança, seja a que vira mãe, seja o feto. Ao contrário, se marginaliza a vítima, que hoje tem este direito como uma exceção, exatamente por ter sido abusada. Não é um projeto que trata do avanço para o aborto de forma indiscriminada. Esse PL foi pura barganha política. Foi tratado como uma forma de ver até que ponto o presidente quer agradar uma bancada. Um teste, como disse o autor do texto. Testar política em um tema sensível para um Brasil cristão e dividido politicamente, com crianças em jogo, não é aceitável nem honesto. Criminalizar crianças e vítimas de estupro é abjeto. Não é nem tema para se tratar com paixão ou opinião. Os dados são bem alarmantes, tristes e exigem políticas públicas e cuidado familiar para educar e orientar crianças para que não levem para sempre o fardo de terem sido abusadas na sua inocência. A lição é clara: cuidar da vida é proteger as crianças.