É enganoso que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha enviado US$ 600 milhões para o agronegócio da Argentina, dos quais seriam US$ 100 milhões para produtores de leite, para que vendessem a mercadoria ao Brasil. O deputado que faz a alegação distorce os termos de um acordo ainda em discussão entre os dois países para viabilizar exportações brasileiras de alimentos e peças de carro aos argentinos. O parlamentar também afirma que o setor do agronegócio está em recessão, o que não é verdade, conforme indicam os dados mais recentes do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Conteúdo investigado: vídeo em que um homem afirma que Lula vai mandar US$ 600 milhões “para o agro” na Argentina. Na sequência, o homem reproduz vídeo do deputado federal Rodolfo Nogueira (PL-MS), em que ele afirma que “Lula destinou US$ 600 milhões ao agronegócio da Argentina” sendo que US$ 100 milhões seriam para “produtores de leite da Argentina para vender ao Brasil”. Ele diz que isso levaria o mercado leiteiro brasileiro, já em crise, à falência. O parlamentar ainda argumenta que o agronegócio estaria em recessão, o que iria se espalhar para outros setores da economia: “Vai chegar na cidade, senhor Lula, a recessão do agro chega na cidade já, já”.
Onde foi publicado: TikTok, WhatsApp e Instagram.
Conclusão do Comprova: é enganoso que o governo Lula (PT) tenha enviado US$ 600 milhões para o agronegócio da Argentina e que parte do valor seria destinado à compra de leite de produtores argentinos. O deputado que faz a alegação distorce os termos de um acordo que ainda está sendo discutido pelos países. O acordo busca viabilizar exportações brasileiras ao país vizinho. A negociação trataria da venda de alimentos e peças de carro para a Argentina, e não da compra de leite pelo Brasil.
O governo brasileiro anunciou, em 28 de agosto, que os dois países chegaram a um acordo para financiar US$ 600 milhões de exportações do Brasil à Argentina, após reunião entre o presidente Lula, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o ministro da Economia argentino, Sergio Massa, que reforçou o anúncio.
A previsão, naquele momento, era de que o Banco do Brasil (BB) pagaria cada exportador brasileiro e teria o Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF) como garantidor do financiamento à Argentina. Ao Comprova, o Ministério da Fazenda comunicou, porém, que o acordo ainda não está fechado, pois resta ser apresentada uma proposta detalhada sobre as garantias do financiamento por parte da Argentina e do CAF.
Já a alegação do parlamentar de que o agronegócio estaria em recessão não encontra sustentação ao ser confrontada com os dados mais recentes do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Economistas classificam como recessão técnica a ocorrência de dois trimestres seguidos de queda do PIB, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e dividido entre os setores de agropecuária, serviços e indústria. O PIB agropecuário teve queda de 0,9% no segundo trimestre deste ano, mas vinha de uma alta de 21% no trimestre anterior. A retração mais recente, conforme análise do IBGE, se deve, principalmente, à base elevada de comparação do primeiro trimestre de 2023.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: o Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No TikTok, uma publicação que repercute a fala do deputado teve 19,9 mil curtidas e 17,8 mil compartilhamentos até 9 de outubro.
Como verificamos: O Comprova reconheceu, no vídeo investigado, o deputado federal Maurício Souza (PL-MG), o Mauricio do Vôlei, ao lado da pessoa que faz as alegações sobre o suposto acordo comercial. Nas redes sociais do deputado, foi possível confirmar que ele estava em um evento de lançamento da Frente Parlamentar em Defesa das Cooperativas e Pequenos Laticínios do Brasil com Leite Nacional e da Pecuária Leiteira Brasileira (FPDCPLB), da Câmara dos Deputados, ocorrido em 20 de setembro de 2023.
Um vídeo de todo o evento está disponível no canal da Câmara no YouTube. O registro permite identificar que o autor da fala é o deputado federal Rodolfo Nogueira (PL-MS). Em sua conta no Instagram, o parlamentar publicou vídeo com alegação semelhante à que fez no Plenário da Câmara.
A reportagem tentou contato com o deputado Rodolfo Nogueira via WhatsApp por seu telefone pessoal e pelo e-mail funcional do gabinete, mas não obteve retorno.
Financiamento à Argentina já foi alvo de desinformação
Essa não foi a primeira vez que as negociações entre Brasil e Argentina se tornaram objeto de desinformação. No início de setembro, o Estadão Verifica fez uma checagem sobre um conteúdo enganoso semelhante, que havia sido divulgado pelo deputado estadual pelo Rio Grande do Sul Gustavo Victorino (Republicanos).
Ao Estadão Verifica, Victorino confirmou que o suposto acordo mencionado por ele, sobre o Brasil enviar US$ 600 milhões ao agronegócio da Argentina, dos quais US$ 100 milhões iriam para produtores de leite, fazia alusão a um financiamento em negociação entre os dois países, também na casa dos U$ 600 milhões, mas para viabilizar exportações brasileiras ao país vizinho, sem relação com o mercado de leite.
Na ocasião em que a alegação viralizou a partir de falas de Victorino, a presidência da Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite) divulgou ter feito contato com o Banco do Brasil para confirmar o suposto repasse milionário ao mercado leiteiro argentino, o que foi desmentido pela instituição financeira, que ressaltou a possibilidade de ter ocorrido uma possível confusão por parte do deputado. O BB reconheceu haver apenas uma negociação para viabilizar exportações brasileiras à Argentina.
Acordo em discussão não tem relação com produtores argentinos de leite
A negociação entre os dois países versa sobre um financiamento para assegurar a continuidade de exportações de alimentos e peças de carros do Brasil para a Argentina.
Em 4 de setembro, o governo federal fez uma publicação sobre o tema, afirmando que, em uma primeira rodada das negociações, o Brasil havia proposto um financiamento de R$ 700 milhões (cerca de US$ 140 milhões), que seria viabilizado pelo Programa de Financiamento às Exportações (Proex), um mecanismo existente desde 1991 para apoiar exportações brasileiras a outros países, não só à Argentina.
Essa mesma publicação do governo federal informa que a Argentina fez uma contraproposta que elevaria o financiamento para US$ 500 milhões, ao contar com garantias do CAF. Não foi apresentado, no entanto, um documento formal com a proposta final ao Brasil, também segundo divulgou a gestão Lula.
A nota ainda afirma que peças de desinformação têm atribuído ao acordo um falso fomento do Brasil para empresas argentinas. Na realidade, a intenção é fomentar a exportação de produtos brasileiros para o exterior.
Em contato com o Comprova, o Ministério da Fazenda reforçou que o acordo não foi fechado e que em momento algum foi sugerido um aporte brasileiro de US$ 100 milhões a produtores de leite da Argentina.
“Nas negociações iniciais, a delegação argentina sugeriu que o financiamento se direcionasse a peças automotivas, um dos principais produtos de exportação do Brasil ao país vizinho. Porém, a negociação não avançou além das intenções sobre este ponto em específico”, escreveu, em nota.
Ainda ao Comprova, o Banco do Brasil, agente exclusivo da União para negociações do Proex, também negou fazer parte de acordo que viabilizaria exportações do mercado de leite da Argentina ao Brasil.
“O Banco do Brasil tem atuado em trabalho conduzido pelo Ministério da Fazenda, envolvendo diversos Ministérios, no sentido de construir alternativa de financiamento às exportações brasileiras para a Argentina. Cabe ressaltar que se alguma solução técnica for viabilizada, é condição indispensável que ela não traga qualquer tipo de risco ou impacto em balanço tanto do BB quanto da União”, escreveu.
Por que o mercado do leite está em crise
O setor leiteiro no Brasil tem vivido crise devido ao preço de venda não cobrir os custos de produção. O mercado reclama, entre outras coisas, que produtores de países vizinhos, caso da Argentina, contam com políticas públicas de fomento, como subsídios, a ponto de conseguirem exportar leite a consumidores brasileiros a preços menores do que os valores ofertados por produtores locais.
De acordo com a Abraleite, produtores têm sofrido com o que chama de “importações predatórias”, vindo especialmente de países parceiros do Mercosul, como a Argentina e o Uruguai. A associação estima que as importações representam mais de 11% do que é consumido tradicionalmente no país. Historicamente, esse percentual era de 3%.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic) apontam que, de janeiro a setembro deste ano, consumidores brasileiros importaram o equivalente a US$ 652,02 milhões de leite, creme de leite e laticínios, uma variação de 105,5% em comparação com o mesmo período do ano passado.
No último dia 2 de outubro, o governo federal anunciou que editaria uma medida tributária para desincentivar a importação de leite de países vizinhos pelo mercado brasileiro. Anteriormente, foi anunciada a destinação de R$ 100 milhões para a compra de leite em pó de agricultores familiares brasileiros como forma de incentivar o setor produtivo nacional.
O que diz o responsável pela publicação: o Comprova tentou contato com o deputado Rodolfo Nogueira via WhatsApp por seu telefone pessoal e pelo e-mail funcional de seu gabinete, mas não obteve retorno.
O que podemos aprender com esta verificação: tirar notícias verdadeiras de seu contexto original para fazer alegações enganosas e falsas a respeito de um assunto de interesse público é uma tática utilizada com frequência por desinformadores. Nesses casos, é importante buscar fontes confiáveis e seguras para entender o que, de fato, está sendo informado, além de verificar se a alegação é verdadeira ou não.
Por que investigamos: o Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: o acordo de fato em discussão ainda foi alvo de uma outra peça de desinformação checada pelo Comprova, que mostrou ser enganoso que o Brasil fará empréstimo à Argentina enquanto Lula bloqueia recursos da saúde e educação. Foi feita também verificação sobre um tuíte que engana ao responsabilizar o governo federal pela importação de laticínios.