A dependência de moradores de municípios pequenos que margeiam a BR-470 por serviços em cidades maiores da Serra, torna o deslocamento pela rodovia uma rotina muitas vezes impossível de evitar. Sem vias alternativas rápidas e pavimentadas, a solução é enfrentar o tráfego pesado da estrada de pista simples, sem acostamento e repleta de pontos críticos.
A combinação de fatores de risco aliada à imprudência de muitos motoristas criaram as condições perfeitas para a estrada ganhar uma trágica fama ao longo dos anos. São acidentes graves que não entram apenas para as estatísticas. Também mudam vidas e obrigam as vítimas a conviver com marcas físicas e psicológicas.
A professora Dineia Guzzo Bassani, de 63 anos, é uma das pessoas que vive esse drama. No dia 6 de maio de 2013, ela viajou a Caxias do Sul para uma consulta. No Ka da família estavam ela, a filha Mônica Guzzo Bassani, de 27 anos, e o motorista contratado para a viagem, Fernando Francisco Bordignon, de 49 anos. Durante o retorno, no km 180, já em Veranópolis, Dineia diz ter percebido que o veículo de trás tentava uma ultrapassagem.
"A gente estava escutando música, minha filha estava dormindo e eu vi o caminhão vindo. Ele ia no sentido Veranópolis-Bento. Para mim, esse carro tentou ultrapassar o nosso e quando viu o caminhão, voltou. Então, se não tinha marcas na lataria, bateu no pneu e desgovernou. Nosso carro voou para a outra pista", lembra.
Mônica, que também era professora, morreu antes de receber socorro. Fernando, o motorista foi socorrido, mas morreu o hospital 45 minutos depois. Dineia perdeu os sentidos enquanto chamava pela filha. Acordou no hospital após 22 dias em coma. Ao todo foram quatro meses de internação, o que impediu a professora de se despedir da filha.
"Isso é outra dor muito grande para uma mãe, que eu carrego dentro de mim e nunca vou conseguir tirar de dentro do meu coração, não ter dado o último beijo e o último abraço. Todos se despediram dela menos eu", lamenta.
O acidente deixou Dineia com dificuldade de locomoção e forçou a aposentadoria por invalidez. O último ferimento resultante do acidente e do longo tempo no hospital curou apenas em setembro deste ano. As consequências emocionais, no entanto, são permanentes, como no caso do autônomo Clécio Neves de Souza, de 44 anos, e da cozinheira Zenaide de Souza, 43. Em 13 de junho do ano passado o filho do casal, Joelson Azevedo de Souza, de 20 anos, morreu após o Escort que ele havia ganho um mês antes se envolver em um acidente com um caminhão e outro carro.
A colisão ocorreu no km 210, próximo ao chamado trevo de São Valentim. Joelson ia da casa da namorada, no centro de Bento Gonçalves, onde havia passado o 12 de junho, para o distrito de Tuiuty, onde morava. Chovia na hora do acidente e a pista estava esburacada.
"O sonho dele era trabalhar, construir alguma coisa para ele, comprar um apartamento, um carro melhor. O sonho maior era ajudar as irmãs e trabalhar" destaca Zenaide. "É tão difícil que só a gente sabe o desrespeito no trânsito aqui de Bento é muito grande. A rodovia não ajuda em nada e ninguém respeita, é uma loucura", completa o pai.
Embora seja praticamente consenso entre especialistas de que a imprudência de muitos motoristas é causa principal de acidentes no país, as condições das rodovias podem contribuir para a incidência ou a gravidade das ocorrências. De acordo com a professora Magda Medianeira Reginato Bassanesi, que há 15 anos estuda logística e processos produtivos, características como as da BR-470 aumentam o risco para quem usa a estrada.
"É uma rodovia que não permite muita ultrapassagem, ela não tem essa disponibilidade de espaço e muitos trechos inclusive sem acostamento. (O motorista) vai desviar de buraco acaba invadindo pista e isso é bem complicado. Isso aumenta, realmente, toda essa gama de acidentes que a gente observa", avalia.
Com a federalização da rodovia, em março, a rotina parece ter começado a mudar. De abril, quando a Polícia Rodoviária Federal (PRF) assumiu a fiscalização por meio da Operação Vinhedos, até o dia 30 de novembro, uma morte foi registrada na estrada. Entre janeiro e abril foram outras duas. Apesar das vidas perdidas, o número é muito menor em relação às 17 mortes do mesmo período do ano passado. Conforme o policial rodoviário federal Felipe Büerger, o diferencial foi a fiscalização constante em pontos críticos da rodovia.
"Tivemos mais de 100 operações de fiscalização de velocidade nesses 200 dias e tivemos praticamente 10 mil veículos autuados por excesso de velocidade na rodovia", ressalta.
O passado trágico, no entanto, ainda não está superado. Líderes da região temem a elevação no número de acidentes com o fim da Operação Vinhedos e a possível redução no número de policiais a partir do dia 1º de janeiro. Conforme Büerguer, existe uma possibilidade de prorrogação, mas nada está definido. Para a região, um esforço necessário para evitar mais traumas no futuro.
"Por Deus, eu estou aqui, viva. Gostaria que fosse o contrário, que Deus tivesse levado eu. Dizem que minha missão ainda não terminou. Eu tenho um filho, chamado Diego, minha neta, Eduarda, e minha nora, Juliana. Acredito que é aí a minha missão", finaliza Dinéia.
*Colaboraram Cristiane Barcelos (Jornal Pioneiro) e Jean Prado (RBSTV)
Gaúcha
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