Por Felipe Meneguzzi
Pesquisador, docente na PUCRS
Desde meados do século 20, um dos assuntos que mais causam preocupação são as mudanças geradas pelo progresso tecnológico. Transformações que passaram por diversas fases psicológicas, das otimistas às pessimistas, algo bem visível na cultura popular.
Um exemplo de otimismo incondicional sobre como a tecnologia libertará as pessoas de suas limitações é a visão de uma humanidade livre de problemas materiais na série Jornadas nas Estrelas dos anos 1960 e 1990. Em contrapartida, temos também o pessimismo distópico no qual as pessoas se tornam escravas de uma ditadura causada ou mediada pela tecnologia, em séries e filmes como Battlestar Galactica e Blade Runner.
Apesar de dramáticos, os exemplos estão longe de apresentar uma visão realística do futuro, baseado no que sabemos hoje das limitações de como o mundo funciona e como isso impacta tecnologias. No meio de diferentes visões, temos a ansiedade social causada pela visibilidade de avanços recentes em inteligência artificial (IA). Enquanto algoritmos de IA já são aplicados há décadas em diversas áreas, são avanços recentes de uma forma específica de IA, conhecida como aprendizado profundo, que geram a maior ansiedade.
Esse sentimento se baseia em três mal-entendidos sobre a área, em particular sobre o que é possível agora e o que será no futuro, e as implicações para a nossa vida diária. O primeiro é sobre o que são exatamente redes neurais artificiais, que fundamentam o dito aprendizado profundo. É comum ouvir de “empreendedores” de IA, que tipicamente não têm conhecimento técnico sobre a área, que essas redes neurais são inspiradas ou de alguma forma replicam o funcionamento do cérebro humano. Nada está mais longe da realidade, pois a única similaridade de redes neurais artificiais com as naturais (de seres humanos) é o nome. É como a similaridade do filme Eu, Robô com o livro do Isaac Asimov (i.e. nenhuma).
O uso dessa analogia visa dar um ar de misticismo a uma tecnologia muito mais prosaica do que o nome sugere. Retirando o misticismo por trás de redes neurais, é fácil entender que elas fazem nada parecido com o raciocínio humano, ou similar ao humano, ou mesmo raciocínio. Inclusive as demonstrações mais impressionantes de modelos de linguagem não passam de geradores de lero-lero sofisticados. Essas técnicas são, de fato, incrivelmente capazes de processar dados ruidosos como imagens, sons e texto e armazená-las, mas têm limitações cada vez mais aparentes, como a eterna promessa dos carros autônomos.
O segundo mal-entendido é sobre a extensão do uso de IA no dia a dia. Por exemplo, a chamada IA simbólica (sem aprendizado de máquina ou redes neurais) já é utilizada desde controle de aeronaves e trens, receituários médicos e problemas de logística, até o corretor gramatical dos editores de texto. Utilização que já ocorre há décadas, sem causar a mesma ansiedade sobre o futuro.
O terceiro mal-entendido – comum entre não estudiosos de IA, mesmo que muito inteligentes – é sobre o potencial das tecnologias de saírem de controle na chamada singularidade tecnológica, como aludido por pessoas como Elon Musk e Bill Gates. A singularidade seria uma inteligência artificial cuja capacidade poderia crescer exponencialmente e eventualmente subjugar a humanidade. Afirmo com tranquilidade que nenhum pesquisador sério de IA considera isso um risco real.
Tal como as máquinas da Revolução Industrial, a revolução de inteligência artificial não eliminará a necessidade de pessoas nas diversas carreiras, mas permitirá que um ser humano faça o trabalho que ocupava muitas pessoas.
Entendendo essas três questões, resta considerar o que o presente e o futuro de IA nos reservam como sociedade. De fato, avanços em redes neurais artificiais permitem processar com boa precisão a enorme quantidade de dados gerados por uma população cada vez mais conectada. É esta mistura de dados com a capacidade de processá-los que causará as potenciais grandes mudanças que vemos para o futuro, que incluem não necessariamente eliminar carreiras por completo. Entretanto, a IA amplificará nossa capacidade de lidar com tarefas intelectuais simples e repetitivas. Dessa forma, tal como as máquinas da Revolução Industrial, a revolução de IA não eliminará a necessidade de pessoas nas diversas carreiras, mas permitirá que um ser humano faça o trabalho que ocupava muitas pessoas.
O diferencial é que os profissionais precisarão entender de computação e IA para seguirem competitivos no mercado. Na contramão da amplificação de capacidades, teremos, e já temos, a amplificação de atividades nefastas, como vemos na proliferação de bots de internet. Essas mudanças nos forçarão a repensar nossas responsabilidades na sociedade e a rever, inclusive, nossas noções de dignidade do trabalho. A IA nos fará exatamente como somos agora, só que mais.