
Um grupo internacional de astrofísicos, com a participação de Jorge Meléndez, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), encontrou indícios de que pelo menos um quarto das estrelas semelhantes ao Sol teria evoluído em um ambiente caótico, instável do ponto de vista gravitacional, que as levou a “engolir” seus planetas.
Se estiver correta, a hipótese será importante para entender a dificuldade em encontrar mundos como a Terra e conjuntos planetários similares ao Sistema Solar. Os pesquisadores analisaram a composição química de mais de 100 sistemas estelares binários, formados por duas estrelas muito parecidas entre si (quase gêmeas) e do mesmo tipo do Sol, e encontraram uma assinatura química que sugere a canibalização de planetas.
Nesses sistemas, as duas estrelas, que orbitam em torno de um centro comum de gravidade, são quase sempre constituídas dos mesmos elementos químicos em idêntica proporção. Esse é o padrão, pois ambas as estrelas se originaram da mesma nuvem espacial de poeira e gás. Mas, em mais de um quarto dos sistemas binários analisados pelos pesquisadores, uma das estrelas apresenta uma composição diferente de sua parceira.
– Ela tem quantidades maiores de lítio e de ferro em relação a sua estrela companheira – comenta Meléndez, coautor de estudo publicado sobre o tema na revista científica Nature Astronomy.
A fonte desse excesso de ferro e, sobretudo, de lítio não pode ter sido as nuvens originais que formaram as estrelas dos sistemas binários. O lítio se encontra em baixíssimas quantidades em estrelas do tipo solar. Mas planetas rochosos, como a Terra, ou mesmo o núcleo de planetas gigantes gasosos, como Júpiter, são ricos em lítio.
Segundo os astrofísicos, a melhor explicação para a presença excessiva do elemento na composição de uma estrela é o despedaçamento de planetas que um dia orbitaram no seu entorno.
– O lítio se preserva mesmo durante a destruição de planetas e deve ter sido capturado por uma das estrelas desses sistemas binários – comenta Meléndez.
O lítio e o ferro oriundos dos planetas são dissolvidos na camada mais externa das estrelas, a zona convectiva. Em estrelas como o Sol, essa camada representa 2% da massa total do astro.
Não é a primeira vez que essa discrepância na composição química de duas estrelas companheiras é flagrada. O próprio astrofísico da USP e seus colaboradores já tinham registrado a anomalia, além de outros grupos de pesquisa. A diferença é que, agora, a amostra de estrelas estudada é a maior em que esse fenômeno foi visto. Os autores do estudo observaram 31 sistemas binários (62 estrelas) com o espectrógrafo Harps, um instrumento dedicado à procura de exoplanetas instalado no Observatório La Silla, no Chile, que é administrado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO). As informações sobre os demais sistemas vieram da análise da literatura científica.
Para o astrofísico italiano Lorenzo Spina, que faz estágio de pós-doutorado no Observatório Astronômico de Padova (Itália) e é o principal autor do artigo, o trabalho abre a possibilidade de usar a análise química de estrelas para identificar aquelas que são as mais prováveis de hospedar conjuntos planetários análogos ao Sistema Solar.
– Existem milhões de estrelas próximas semelhantes ao Sol, mas, sem um método para identificar os alvos mais promissores, a busca pela Terra 2.0 é como procurar agulha em palheiro – diz Spina, que fez pós-doutorado na USP com Meléndez entre 2015 e 2017 com bolsa da Fundação.
Nos últimos 25 anos, cerca de 3,5 mil sistemas planetários e quase 5 mil exoplanetas foram descobertos. Também denominados planetas extrassolares, os exoplanetas são mundos que giram em torno de qualquer outra estrela que não o Sol. O problema é que, até agora, a arquitetura desses outros sistemas planetários é muito diversa.
– É provável que, nos sistemas mais dinâmicos, parte do material planetário possa ter caído na estrela hospedeira. No entanto, ainda é desconhecida a frequência desses sistemas caóticos em relação a outros ambientes estáveis semelhantes ao nosso Sistema Solar, cuja arquitetura ordenada certamente favoreceu o florescimento da vida na Terra – comenta Spina.
– Nossa pesquisa aborda essa questão e indica que pelo menos um quarto dos sistemas planetários que orbitam estrelas semelhantes ao Sol passou por uma evolução muito caótica e dinâmica.
Segundo o astrofísico José Dias do Nascimento Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a ingestão de planetas por sua estrela hospedeira é uma ideia proposta desde a segunda metade da década de 1960, muito antes da confirmação da descoberta do primeiro exoplaneta, em 1995. Desde então, essa possibilidade tem sido refinada do ponto de vista teórico e impulsionada por novos dados observacionais.
– sse artigo do Spina e do Meléndez fornece pela primeira vez uma estimativa da probabilidade de esse tipo de evento ocorrer – comenta Nascimento Júnior, que também estuda estrelas gêmeas do Sol, mas não participou do trabalho.
– Se esse resultado for comprovado e confirmado por outros estudos, indicará que são ainda mais raros os mundos estáveis e semelhantes à Terra e que sua detecção também deverá ser mais difícil.