Por meio de uma nota divulgada neste domingo (29), a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria comunicou que se sente "representada" pela série produzida pela Netflix a respeito do incêndio da boate Kiss e pelo livro que deu origem à produção - Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex.
A manifestação tem teor oposto ao que foi divulgado recentemente por um grupo de pais e moradores da cidade que se disseram pegos de surpresa pela série e que não concordam com o uso da história para fins lucrativos.
Segundo o texto publicado em redes sociais e assinado pelo presidente da associação, Gabriel Rovadoschi Barros, os familiares estavam "cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro", e a entidade "sente-se representada" pela criação da Netflix e pelo livro.
A nota sustenta ainda que a produção "não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância". O trecho faz alusão a pais que foram processados por integrantes do Ministério Público por terem feito críticas à atuação deles no caso.
A associação reitera que não está movendo nenhum processo contra os responsáveis pelas obras, e nem pretende fazer isso, por acreditar "na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória".
Em sentido contrário, o empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu uma filha de 19 anos no incêndio, havia afirmado que um outro movimento de pessoas envolvidas no episódio não quer dinheiro dos produtores, mas não concorda com a utilização do episódio para geração de lucro.
— Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos. Há pais passando mal por causa da série. O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós — disse Eriton, conforme reportagem publicada no sábado (28) por GZH.
Leia a íntegra da nota da associação
"Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série Todo Dia a Mesma Noite, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através desta nota que estávamos, sim, cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.
A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.
Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o primeiro dia de nossa fundação.
Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.
Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios, pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por Justiça.
Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.
Santa Maria, 29 de janeiro de 2023."