Para assaltar uma residência na zona sul de Porto Alegre, um criminoso utilizou uma estratégia inusitada. Usou documentos falsos para realizar cadastro em um aplicativo de entregas e ter acesso à residência. Assim, conseguiu se passar por um morador de Caxias do Sul, na Serra, sem antecedentes policiais, e esconder sua verdadeira identidade. Pelo menos por algum tempo.
Após o roubo, a Polícia Civil conseguiu chegar ao nome do falsário e de um comparsa. Ambos tiveram impressões digitais descobertas dentro da moradia da família atacada. Com prisão preventiva decretada, estão foragidos – os nomes não foram divulgados pela polícia.
O caso aconteceu na noite de 26 de fevereiro, uma sexta-feira, após uma família moradora da Rua Pareci, na Vila Assunção, pedir uma entrega de comida pelo UberEats. Quando uma das moradoras saiu para receber o produto, havia dois homens junto ao portão. Um deles estava numa bicicleta motorizada. Logo depois de alcançar o pacote, o entregador e o comparsa anunciaram o assalto. Com os rostos cobertos por máscaras de proteção para a covid-19, os dois fizeram ameaças, dizendo que estavam armados. A vítima foi obrigada a deixar que eles ingressassem na casa.
Dentro da moradia, os criminosos renderam mais quatro pessoas: outra mulher, uma jovem, um adolescente e um idoso de 84 anos, todos da mesma família. Os bandidos usaram toalhas e pedaços de tecidos para amarrar as vítimas, que foram trancadas em um dos quartos. Durante o assalto, os criminosos chegaram a consumir parte dos alimentos e bebidas que estavam na geladeira. A dupla permaneceu ali por cerca de três horas, até um deles ir embora na bicicleta e o outro ser levado de carro por uma das moradoras até a Vila Cruzeiro, onde desembarcou. Foram roubados da residência uma televisão, três notebooks, um celular, joias e dinheiro.
Ao deparar com o caso inusitado, no fim de semana a polícia começou a tentar chegar aos nomes dos assaltantes. Havia naquele momento diferentes hipóteses para o crime. Uma delas era de que os bandidos tivessem assaltado um entregador e assumido seu lugar na entrega. Mas não havia notificação de roubo nesse sentido e as vítimas afirmavam que um dos criminosos, ainda que estivesse de máscara, era parecido com a foto do entregador que aparecia no aplicativo.
Com os dados fornecidos pela empresa sobre o cadastro do entregador, no domingo a polícia teve certeza de que o nome cadastrado na plataforma, de um caxiense sem antecedentes, era falso. A foto do documento no sistema de consultas não coincidia em nada com a imagem do assaltante. O criminoso havia usado a própria foto com o nome de outra pessoa.
— Passamos a suspeitar que algum falsário tivesse usado o nome de outra pessoa. Ele usou o nome de uma pessoa que também é vítima. Pegou os dados dessa pessoa e encaminhou para o aplicativo para o cadastro. Desde o início, a equipe foi incansável — afirma a delegada Áurea Hoeppel, titular da 6ª Delegacia de Polícia.
Mas, até então o que a polícia tinha era somente uma fotografia, sem nome. Outro ponto que chamou a atenção da polícia é que os criminosos aparentavam não conhecer a cidade. Um deles pediu que a vítima lhe deixasse na Zona Sul, sendo que era onde estava. O local onde um dos assaltantes pediu para ser deixado, na Rua Dona Otília, na Vila Cruzeiro, também levantou suspeitas. Era próximo a um ponto de tráfico, o que fez a polícia acreditar que os objetos roubados seriam repassados para pagamento de alguma dívida com drogas.
Com a foto do falso entregador, o local onde um deles havia desembarcado e outras informações que foram sendo colhidas pelos policiais, a investigação — que contou com o apoio também da Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Metropolitana (DPM)— conseguiu obter o nome do suspeito de ser o falsário. Um homem de 34 anos, com diversos antecedentes por roubos. A imagem coincidia com a foto cadastrada no aplicativo. O nome do outro chegou dois dias depois. Com 41 anos, também acumulava histórico criminal. Outro fato coincidia com a história: ambos eram naturais de Bento Gonçalves, na Serra, região onde foram registrados todos os demais crimes pelos quais são investigados.
— Por isso, não conseguiam andar direito dentro da cidade. Os dois respondem a vários inquéritos por roubo — afirma a delegada Áurea.
A confirmação das suspeitas da polícia se deu com o recebimento dos laudos periciais. Como os assaltantes reviraram a casa inteira, inclusive mexendo em alimentos da geladeira, o Instituto-Geral de Perícias (IGP) conseguiu localizar impressões digitais em diversos pontos da moradia. Ao analisar essas digitais, conseguiram confirmar a identificação da dupla. Eram os mesmos suspeitos já descobertos pelos policiais. Com essas provas, a polícia obteve as prisões preventivas.
Buscas
A partir daí, os investigadores começaram a realizar buscas para tentar localizá-los. Os policiais estiveram na Vila Resvalo e na Vila Cruzeiro, em pontos onde havia informação de que eles tinham passado. Mas até esta sexta-feira (19), nenhum dos dois havia sido localizado.
— O fato em si foi esclarecido na mesma semana, mas não divulgamos antes em razão dessas tentativas de captura. A perícia também foi fundamental para ratificar uma suspeita que já tínhamos. Fortaleceu a prova — explica a diretora do DPM, delegada Adriana Regina da Costa.
O inquérito foi concluído e será remetido ao Judiciário nesta sexta-feira. Os dois suspeitos, que permanecem foragidos, foram indiciados pelo crime de roubo qualificado. Em razão do cadastro falso, um deles ainda responderá por falsidade ideológica e falsificação de documento público.
— Trabalhamos muito para tentar prendê-los. Com a Lei de Abuso de Autoridade, estamos impedidos de divulgar as imagens, o que dificulta em muito a investigações. Foi um trabalho árduo nessas semanas. A procura por esses indivíduos não parou. Não é pela conclusão do inquérito que encerramos o caso. Eles podem estar em qualquer parte do Estado — diz a delegada Áurea.
A polícia acredita que o cadastro tenha sido usado somente para cometer esse roubo. Este é o primeiro caso registrado de crime do qual são suspeitos em Porto Alegre. Embora o crime tenha gerado temor entre as pessoas que utilizam aplicativos de entrega, antes ou após esse fato não houve registro de nenhum outro caso semelhante.
O que diz o UberEats
A Uber, responsável pelo aplicativo, afirmou por nota que são adotadas medidas de segurança em relação aos entregadores cadastrados, que está constantemente tentando evitar fraudes e que esta pessoa teve a conta desativada logo após a comunicação do fato.
Confira a nota:
“A Uber não tolera nenhum comportamento criminoso. A conta do entregador parceiro foi desativada da plataforma assim que a denúncia foi feita e colaboramos com as autoridades durante toda a investigação, nos termos da lei.
Estamos constantemente implementando novos processos e tecnologias para evitar fraudes e seguimos trabalhando para ficar à frente dos golpes. Temos uma ferramenta que faz a verificação de identidade do entregador parceiro em tempo real. De tempos em tempos, o aplicativo pede, aleatoriamente, para que os entregadores parceiros tirem uma selfie, antes de aceitar uma entrega ou de ficar on-line, para ajudar a garantir que a pessoa que está usando o aplicativo corresponde àquela da conta que temos no cadastro.
Além disso, todos os entregadores parceiros cadastrados na Uber passam por uma checagem de antecedentes criminais realizada por empresa especializada que, a partir dos documentos fornecidos para cadastramento na plataforma, consulta informações de diversos bancos de dados oficiais e públicos de todo o país em busca de apontamentos de crimes que possam ter sido cometidos. A Uber também realiza rechecagens periódicas dos entregadores parceiros já aprovados pelo menos uma vez a cada 12 meses”.
Como se proteger
- Fique atento ao perfil que aparece no app de entrega: nome e foto do entregador
- Caso seja chamado pelo interfone, cuidado. Questione para quem é a entrega e de onde ela veio antes de sair para atender
- Evite abrir o portão e ter contato direto com quem está fazendo a entrega. Uma opção é instalar junto ao portão do prédio ou casa um “passador” de encomendas
- Desconfie se houver mais de uma pessoa no momento da entrega. Neste caso, não abra a porta ou portão
- Em condomínios com portaria, opte por receber o produto no acesso do prédio e retirar ali com o porteiro
- Oriente as pessoas da sua família a adotarem as mesmas medidas de segurança