O plano da freira Maria Ana Dal Santo, 79 anos, era regressar na terça-feira (19) a Iporã, no noroeste do Paraná, onde vivia há quatro décadas. Antes disso, cuidaria da casa que mantinha com a irmã na área rural de São João do Polêsine, município de 2,5 mil habitantes da região central do Rio Grande do Sul. Mas no início da tarde do último domingo (17), a religiosa foi encontrada morta. Irmã Ana, como era conhecida, foi assassinada dentro da moradia em Linha da Glória. A motivação desafia a polícia.
Fraterna, estudiosa e dedicada à vida religiosa há mais de 60 anos, a irmã Ana aparentemente não tinha desafetos. Sua familiar mais próxima é uma irmã mais velha, que reside em São João do Polêsine, onde a família das duas vivia. Foi para auxiliá-la que a freira regressou ao Estado no fim do ano passado. A primogênita está debilitada e passava por um período de recuperação em uma casa de idosos em Paraíso do Sul.
Desde então, a freira passou a permanecer na casa, herança da sua família, enquanto a irmã estava fora. A moradia fica na localidade de Linha da Glória, na área rural do município. Embora haja residências próximas, o imóvel está em um ponto isolado, cercado por mato no entorno. No início da tarde do domingo, por volta das 14h, outra religiosa foi até a casa. Acabou deparando com o corpo da irmã Ana estirado no chão do quarto.
A freira foi assassinada com um golpe na parte de trás do pescoço, próximo da nuca. A vítima foi quase decapitada — havia um corte profundo no pescoço. A suspeita é que se tenha usado algum tipo de faca, facão ou foice. Não havia marcas no corpo da idosa que indicassem qualquer resistência, como cortes ou hematomas de defesa. A cena leva a polícia a acreditar que ela pode ter sido pega de surpresa pelo criminoso e golpeada sem perceber a presença do assassino.
O perfil da idosa, religiosa, morando há décadas em Estado distante, é o desafio que a polícia enfrenta para tentar descobrir quem pode ter decidido matá-la. Uma das primeiras hipóteses verificadas foi a de que um ladrão tivesse entrado no local, deparado com a freira, e cometido o crime para não ser descoberto. Porém, a possibilidade começou a ser descartada logo no início.
A casa, embora estivesse com janelas e portas abertas, como é habitual na localidade, não tinha qualquer sinal de que alguém tivesse revirado os cômodos em busca de objetos de valor. Mas o que mais impressionou a polícia foi que sobre a mesa da cozinha estava a bolsa da irmã Ana. Dentro dela, havia R$ 6 mil, que seriam usados para quitar contas da propriedade. O dinheiro havia sido sacado recentemente e estava intacto. O celular da idosa também ficou na moradia.
Embora seja uma cidade pacata, em julho do ano passado São João do Polêsine passou por outro caso brutal. Um idoso foi morto e teve o corpo carbonizado, mas a investigação apontou que se tratava de um latrocínio. Três suspeitos foram presos após a polícia descobrir que o veículo da vítima havia sido vendido e objetos da casa dele foram levados. Mas, desta vez, o contexto até o momento parece ser outro.
— Nada foi levada da casa. Estamos trabalhando com a hipótese de que alguém foi lá realmente para matar. Mas por que matar? A motivação é algo que não conseguimos compreender ainda — afirma o delegado Sandro Meinerz, que coordena a investigação.
A irmã mais velha da religiosa, que reside na mesma casa, mas estava atualmente internada na clínica de idosos, foi ouvida nesta terça-feira (19) pela polícia. Ela relatou aos agentes que vive há mais de 30 anos no local e que nunca houve nenhum episódio de furto ou roubo. Nos últimos cinco anos, desde que uma outra irmã morreu, ela reside sozinha no imóvel. O único crime registrado na propriedade foi justamente o assassinato da freira.
Até o momento, mais de 10 pessoas foram ouvidas pela investigação — entre eles uma prima das idosas e um sobrinho. Os relatos das pessoas que estiveram com a irmã pela última vez fazem a polícia acreditar que a morte tenha acontecido ainda na manhã de domingo. A casa passava por consertos e um trabalhador, que atende há anos as freiras de Vale Vêneto, distrito de São João do Polêsine, realizava o serviço.
Ele contou que deixou o imóvel por volta das 10h15min e deveria regressar no dia seguinte. O corpo da irmã foi localizado no início da tarde e não havia sinal de que ela tivesse almoçado. Não havia louças na pia, nem panelas no fogão, e a comida dela, que havia sido preparada anteriormente, estava na geladeira.
Outro detalhe que intriga a polícia é o fato que irmã Ana não costumava ficar sozinha na propriedade – a casa era herança deixada pelos pais. Normalmente, havia outras freiras lhe fazendo companhia, inclusive à noite. O crime aconteceu justamente no período em que estava somente ela na moradia. A polícia ainda não tem suspeitos.
— No pouco tempo em que ficou sozinha na propriedade, num espaço de três horas, ela acabou assassinada. É uma comunidade onde todos se conhecem. Sabiam que a irmã dela não estava ali desde que foi internada. Parece ter sido algo específico para a irmã Ana. Mas o motivo desse crime brutal ainda estamos tentando entender — diz o delegado Meinerz.
Trajetória
Dedicada à atividade religiosa desde a adolescência, irmã Ana passou a maior parte da vida no Paraná. Foi lá que se tornou praticamente patrimônio, como relembram as outras religiosas de Iporã, município com 13,7 mil habitantes. A freira atuava na Escola Nossa Senhora Aparecida, da congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
Na instituição, que atende alunos do Ensino Fundamental até o 5º ano, especialmente em situação de vulnerabilidade, foi professora de português, vice-diretora e diretora.
— A irmã Ana sempre foi muito dedicada à educação dessas crianças, o acompanhamento com as famílias, e uma exímia professora. Uma pessoa muito simples. No município todo mundo a conhece. Dizem que ela é o patrimônio porque está aqui há mais de 40 anos. Sempre teve o carinho da comunidade. A maioria estudou aqui, e agora os filhos estudam. Ela era uma pessoa alegre, prestativa, muito fraterna. Nunca teve desafeto com ninguém — descreve a irmã Eurides de Oliveira, coordenadora provincial Nossa Senhora de Guadalupe, da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
A irmã Ana costumava se dedicar à escrita, ao cuidado com os animais e plantas, mantidos em uma área aos fundos da instituição, e era procurada frequentemente por pessoas em busca de conselhos. A freira, que em 6 de agosto deveria completar 80 anos, também rezava muito, segundo as outras irmãs.
— É uma religiosa que viveu a sua vocação, na alegria, no serviço e na missão educativa. Era capaz de tirar dela para poder ajudar o outro. Para nós, tem sido muito dolorido entender essa situação tão triste — descreve Eurides.
Irmã Ana deveria ter regressado para o Paraná na terça-feira, onde era aguardada pelas outras religiosas. Essa era a segunda vez que viajava ao RS nos últimos meses. Em novembro esteve em São João do Polêsine para auxiliar a familiar. Na manhã da última segunda-feira, ela foi sepultada no distrito de Vale Vêneto. No mesmo dia, foi realizado um ato simbólico de homenagem na escola em Iporã. Professores e outros religiosos deram depoimentos sobre a trajetória da irmã.
A direção da congregação emitiu uma nota sobre o caso, onde lamenta a perda e reforça que a irmã não tinha desafetos. “Agradecemos as orações, sintonia, a solidariedade com a Congregação, e sobretudo com a Comunidade das Irmãs em Iporã/PR, nesse momento de dor, indignação, sofrimento, porém, de esperança na ressurreição do Senhor”, afirma o comunicado assinado pela irmã Maria Freire da Silva.