Em 24 de janeiro de 2014, Bernardo Uglione Boldrini cruzou sozinho a porta do Fórum de Três Passos e pediu para falar com o juiz. Queria relatar a falta de afeto em casa por parte do pai e as brigas com a madrasta. Pedia para morar com outra família. No dia 11 do mês seguinte, em audiência, o juiz Fernando Vieira dos Santos, da Infância e Juventude, deu prazo de 90 dias para nova audiência de avaliação do quadro familiar. Bernardo foi morto antes disso.
O mesmo prédio, na Avenida Júlio de Castilhos, abrigará agora o julgamento pelo assassinato do menino a partir de segunda-feira (11). O pai Leandro Boldrini e a madrasta Graciele Ugulini são réus no caso, ao lado de Edelvânia e Evandro Wirganovicz. A cidade, que não conseguiu atender os apelos de Bernardo, aguarda pelo desfecho do caso, numa mistura de clamor por justiça, expectativa e tensão.
— A gente acredita que a justiça vai ser feita. É o que nos move — diz o empresário Édison Muller, que costumava receber Bernardo em seu restaurante e em casa.
O filho dele e Bernardo eram colegas na escola. No Colégio Ipiranga, onde o garoto cursava a 6ª série, o diretor Nelson Weber afirma que a instituição não está prevendo atividade extra durante o julgamento. Colegas do menino ainda estudam na escola, que conta com 477 alunos. A decisão de os estudantes irem ou não ao Fórum será das famílias. O educador diz que a perda foi trabalhada pela equipe.
— Todos na cidade sentiram o impacto. Os colegas, porém, de forma mais forte. Tivemos que encontrar o equilíbrio novamente. O caso agora está nas mãos da Justiça.
Para evitar tumulto no entorno do Fórum — como na audiência, em que áudios com gritos de Bernardo foram reproduzidos em carro de som — está proibida a aglomeração de pessoas nas proximidades e esse tipo de emissão de áudio. Além do efetivo local da Brigada Militar, o Batalhão de Polícia de Choque de Santa Maria realizará segurança no entorno e controle do trânsito. Equipes do Tribunal de Justiça e da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) também estão encarregados de proteger os envolvidos no julgamento.
A sessão exigiu alterações no Fórum, que manterá somente expediente interno de 11 a 18 de março. Os prazos processuais foram suspensos. A sala do júri, no segundo andar, foi adaptada. Teve acréscimo de 20 cadeiras, para receber 70 pessoas. Também foi preciso colocar mesa extra e cadeiras para a defesa dos quatro réus.
Embora a concentração não seja permitida, moradores devem fazer vigília com orações, faixas, camisetas e adesivos nos arredores do prédio. Cartazes com fotos de Bernardo e pedidos de justiça estão espalhados pela cidade.
— Todos aqui sentiram a perda do Bernardo. Isso mexeu muito com as pessoas. Segunda-feira será praticamente como feriado aqui — diz a Paula Borges, funcionária da empresa que produz os materiais gráficos.
A repercussão do caso lotou também a hotelaria da região. Hotéis do município e de outros próximos estão com reservas lotadas para a próxima semana. Em um deles, ficarão hospedados e isolados os jurados. Membros do Ministério Público, do Judiciário, imprensa e estudantes ocupam o restante dos quartos.
Gravações marcaram comunidade
Os vídeos e áudios, divulgados ao longo do inquérito, nos quais Bernardo aparece em situações de confronto com o pai e a madrasta dentro de casa, são citados com frequência entre os moradores de Três Passos. Em um deles, o menino aparece acuado dentro de um armário, chora e pede que o pai pare de gravar. O vídeo foi feito em agosto de 2013, na véspera do Dia dos Pais. O menino gritou tanto por socorro que a Brigada Militar foi chamada por vizinhos.
— A gente não fazia ideia de que ele passava por tudo aquilo. Sabia do abandono afetivo, mas não daquela tortura psicológica. Isso vai ficar para sempre. O tempo pode diminuir a dor, mas esquecer, impossível — constata a psicóloga Denise Helena Escher.
Coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública do Ministério Público, o promotor Luciano Vaccaro afirma que esses registros poderão ser exibidos ao longo do júri.
— Choca a maneira como o pai e a madrasta tratavam o filho e enteado. E tudo veio à tona no processo. A comunidade de Três Passos relatou bem isso. Esse desleixo, esse abandono. Isso choca o Ministério Público, a comunidade e toda a sociedade. Essa família tinha tudo para amar e cuidar dessa criança. Mas eles planejaram e cometeram um crime dessa gravidade. Deixa todos perplexos — analisa.
O MP defende que os quatro réus sejam condenados às penas máximas. Em relação a Boldrini, a Promotoria também afirma estar convicto de que vai comprovar o envolvimento dele no crime.
— As provas no processo são fartas da participação do pai, tanto no planejamento como até na execução do crime. É um processo volumoso, com muitas provas. Vamos sustentar isso, não há dúvidas.
Jurados isolados
Sete pessoas da Comarca de Três Passos (que inclui também Bom Progresso, Tiradentes do Sul e Esperança do Sul) serão responsáveis por decidir se os réus são culpados ou inocentes. Eles integrarão o conselho de sentença. Os nomes serão sorteadas a partir de um grupo de 25. Ao longo do julgamento, ficarão hospedados em um hotel da Região Noroeste.
Em extensa área arborizada, o local costuma ser refúgio de quem busca dias de descanso. Foram reservadas 21 vagas, divididas em nove quartos. Todos são equipados com televisão, aparelho que precisará ser desativado. Jurados não terão acesso a meios de comunicação. Só têm permissão para conversar com 15 oficiais de Justiça.
O hotel precisou reforçar equipes de limpeza e cozinha para o período. O café da manhã será servido em sala apartada. Durante o horário do júri, as refeições serão feitas no Fórum. Os intervalos, para descanso e alimentação, serão definidos ao longo do julgamento.
Segundo a juíza Sucilene Engler Werle, de Três Passos, caso algum jurado desobedeça as restrições estará sujeito a multa de um a 10 salários mínimos e exclusão da lista geral. Isso pode acarretar na dissolução do conselho de sentença.