Elas não geraram e nem deram à luz Bernardo Uglione Boldrini. Mas carregam uma das piores dores pelas quais uma mãe pode passar: enterrar o filho. Por anos, alimentaram, medicaram, aconchegaram e acolheram o menino em seus braços e lares. Bernardo buscava afeto nas famílias dos coleguinhas de escola e dos vizinhos. Órfão de mãe, acabou assassinado aos 11 anos. O pai, Leandro Boldrini, e a madrasta, Graciele Ugulini, são réus no caso, ao lado de Edelvânia e Evandro Wirganovicz. O julgamento está previsto para as 9h30min de segunda-feira (11), em Três Passos.
Por quase cinco anos, as mães de Bernardo arrastam o luto, envolto pela culpa de não terem evitado o fim precoce e trágico. Hoje, elas tentam transpor o sofrimento e transformá-lo em algo bom. Desde a morte do menino, que adorava abraços, um grupo de 10 mulheres faz ações voluntárias no município, com crianças e idosos. São vizinhas, professoras e amigas que decidiram transcender a dor. Juntas, tratam as cicatrizes uma da outra, e encontram momentos de respiro nas atividades sociais.
Donas de casa, comerciantes, aposentadas, empresárias, as "Amigas do Bem" fazem alusão ao apelido Bê, assim carinhosamente chamado. Com idades entre 33 e 71 anos, mulheres de perfis distintos trocam mensagens diárias em grupo de WhatsApp e se reúnem para planejar as ações. A dor e as lembranças de um garoto alto, magrinho, inquieto e que não poupava gestos de carinho, são pontos em comum nos encontros.
Uma das últimas recordações que a professora Susana Ottonelli guarda de Bernardo é ele entrando na escola carregado de doações. Havia angariado roupas e materiais escolares para uma gincana. Estava feliz, vitorioso.
— O coração dele era enorme. O Bernardo nos fez entender que doar e ajudar é lindo e importante. É bonito ver que coisas tão pequenas fazem tão bem aos outros e muitas vezes são tão superficiais para nós. Se cada um de nós fizesse um pouquinho, seria tudo melhor — emociona-se.
Em 6 de setembro de 2017, quando o garoto faria 15 anos, o grupo promoveu uma singela festa de aniversário. Prepararam bolo com confetes azuis. Nele havia velinhas com a idade que Bernardo não pôde alcançar. A celebração simbólica ocorreu no Lar Acolhedor, que abriga crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos e negligência doméstica em Três Passos. A rua onde está localizada a instituição é chamada Menino Bernardo. O nome simboliza a tentativa da cidade de aprender com a perda.
Só quem lembra dele te abraçando sabe a dor que é. Essa dor a gente vai carregar para sempre. Não vai passar com esse julgamento.
— Acho que hoje as pessoas estão mais atentas aos casos de violência contra criança. Não hesitam tanto em denunciar. Estamos tentando transformar isso em aprendizado — relata Denise Helena Escher, que hoje atua no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica).
Na época do crime, a psicóloga trabalhava no colégio onde Bernardo estudava. Nos corredores da escola, o menino vivia pendurado nela. Quase derrubava a professora, mais baixa que ele, no ímpeto de abraçá-la. Denise é uma das integrantes do grupo de mulheres que mantém viva a memória do menino. Além de fazer doações para instituições, são elo com aqueles que acompanham o caso em outras regiões do Brasil e até fora do País. Nas redes sociais, grupos cobram justiça pelo crime.
A casa onde Bernardo vivia com o pai, a madrasta e a irmãzinha, de um ano e meio, é o reflexo dessa mobilização. As grades cinzas do imóvel, na Rua Gaspar Silveira Martins, estão cobertas de cartazes com mensagens de saudades e pedido de justiça. Para o julgamento, as flores antigas foram retiradas e serão substituídas.
Em frente à casa, uma moradora recorda do dia 3 de abril de 2014, quando o menino caminhava pelas ruas acompanhado de coleguinhas do Colégio Ipiranga. Estavam envolvidos na venda de uma rifa. Bê fez um pedido que ela não esqueceu: "Tia, me dá um abraço?" Ela conta que aconchegou Bernardo em seus braços. O garoto sorriu e pediu que ela comprasse um número da rifa.
— Ele não me pediu ajuda, só um abraço. E um dia depois se foi, desapareceu. Estava com aquela camisetinha ali — aponta a foto e chora.
Ao lado da imagem, em outro cartaz, Bernardo aparece segurando uma vela branca, com sorriso tímido. O registro foi feito na primeira comunhão, em dezembro de 2013. O menino era coroinha na Igreja Matriz de Três Passos. O casal de vizinhos Juçara e Carlos Petry, que costumavam acolhê-lo em casa, acompanharam o garoto. A falta do pai na cerimônia entristeceu Bernardo e indignou moradores.
— A gente sabia que tinha algo errado, mas pensava que era só privação de afeto. Sabia que o pai trabalhava muito e que o Bernardo não tinha boa relação com a madrasta. Mas ele tinha fascinação pelo pai. Dizia que ia ser médico. Fica a revolta e a sensação de traição. E a culpa, claro. Como não percebi? Esse grupo é uma tentativa também de aliviar a tensão e a tristeza — diz Denise.
A psicóloga acompanhou a infância do menino a partir da idade escolar. A mãe de Bernardo, Odilaine Uglione, morreu em 10 de fevereiro de 2010, com um disparo dentro do consultório do marido. A polícia concluiu o caso como suicídio. A criança passou a ser cuidada por babás. Pouco tempo depois, Graciele mudou-se para a casa do médico. O menino e o madrasta eram vistos juntos pela cidade. Após o nascimento da filha do casal, a relação teria piorado. As reclamações de Bernardo fizeram o Conselho Tutelar ir até a escola, no fim de 2013.
— Eu disse: "Bernardo, pode falar tudo para eles, vão te ajudar." Eu não cumpri essa promessa. A minha maior dor é essa. A gente espera que agora a justiça seja feita. Só quem lembra dele te abraçando sabe a dor que é. Essa dor a gente vai carregar para sempre. Não vai passar com esse julgamento — chora.
A gente sempre teve essa sensação de que ele iria voltar. E é o que sentimos até hoje. Que ele vai voltar. Para o grupo ainda não caiu a ficha. É muito difícil.
Nem todos que conviveram com o menino conseguem falar sobre o caso. Segundo a professora Simone Müller, colegas de escola silenciaram por três anos. O filho dela estudava na mesma turma de Bernardo. Os dois andavam juntos pela cidade. Após a morte, os alunos foram convidados para atividades do grupo. Só aceitaram participar do aniversário de 15 anos.
— É muito difícil para eles lidar com essa perda. O Bernardo não contou para nenhum amigo o que vinha passando. Depois fomos ver aqueles vídeos, áudios (gravados pelo pai). Aquilo ele nunca falou. Por que ele não contou? Os colegas dele se questionam e a gente também. Ele via a vida dos colegas, com pai e mãe, sendo cuidados, amados. Talvez tivesse vergonha. Isso pesa para todos — diz Simone.
Foi na casa da professora que Boldrini procurou pelo filho, em 6 de abril, dois dias após ele desaparecer de Três Passos. Era comum o menino permanecer na residência da professora. Simone estranhou o fato de o médico ir até lá procurar Bernardo. Não era habitual. A população se mobilizou em buscas. Colegas de escola criaram o grupo VoltaBê. Os moradores imaginavam que ele tivesse fugido.
— A gente sempre teve essa sensação de que ele iria voltar. E é o que sentimos até hoje. Que ele vai voltar. Para o grupo ainda não caiu a ficha. É muito difícil — conclui Simone.
Em 14 de abril, Edelvânia indicou à polícia onde estava enterrado o corpo do menino, em Frederico Westphalen. Relatou que o menino foi dopado com dois comprimidos e morto com injeção letal. O pai e a madrasta foram presos, e a casa da família, apedrejada pela população revoltada. Até hoje a residência exibe marcas no telhado. Perto dali, um menino magrinho sobe a rua, jogando uma bola para o alto, enquanto outros caminham e brincam no retorno da escola, num contraste à infância roubada de Bernardo.