Poder estar presente onde estivessem ocorrendo as coisas mais importantes da história é uma das minhas fantasias antigas. Essa ideia se tornou mais recorrente com o passar dos anos, somada à tendência quase incontrolável de inventariar o que fizemos. Um sinal inequívoco de velhice. Saudável, mas ainda assim, velhice.
Sempre me seduziu o protagonismo dos movimentos sociais que mudaram o curso das civilizações. Ainda que essas mudanças frequentemente fizessem parte de um processo, o que as tornava quase previsíveis, muitas delas foram desencadeadas por algum evento impactante que as precipitou. Esse era o momento a ser testemunhado, não importando que parecesse um plágio histórico do Forrest Gump.
De qualquer maneira, é deslumbrante se imaginar em Paris no dia da queda da Bastilha, assim como em Berlim quando o muro veio abaixo. Lembro que estava em casa, vendo TV com algum enfaro, naquele 9 de novembro de 1989, quando começaram a noticiar que as pessoas estavam cruzando o muro de um lado a outro e alguns debochadamente cavalgavam-no sob o olhar perplexo de uns poucos soldados que nada podiam fazer para impedir a rebelião. A menos que, enlouquecidos, decidissem metralhar a avalanche e morrer soterrados por ela.
No terceiro volume da Trilogia do Século, A Eternidade por um Fio, Ken Follett descreve magistralmente o sentimento das famílias alemãs, partidas ao meio durante quase 30 anos por um regime que já nasceu autoritário e sem explicação seduziu pessoas aparentemente inteligentes pelo mundo afora, que nunca se questionavam por que tantos arriscavam a vida para viver do lado oposto do muro.
Com a mãe Rússia transformada em madrasta - porque com a baixa do petróleo acabaram os subsídios -, as repúblicas satélites foram comunicadas por Gorbachev que, a partir daquele momento, cada país devia resolver seus próprios conflitos internos.
Daí em diante, cresceram as pressões para que os alemães orientais pudessem sair do paraíso comunista, como já podiam fazer os húngaros depois que a cerca elétrica que os separava da Áustria ruíra, e a porteira ficou aberta no imaginário dos escravizados. Nada teria o significado da queda do regime na Alemanha, onde aqueles 156 quilômetros de muro marcavam a divisória de duas ideologias opostas.
Estabeleceu-se, então, um clima de inigualável comoção em Berlim, numa mistura de medo, incerteza e excitação. Se fosse possível, essa seria a hora de parar o tempo para dar chance a que se organizassem excursões no mundo inteiro com os interessados em viver, in loco, o momento mais intenso do século 20. E então, com ingressos esgotados e todos a postos, começaria o espetáculo. No meio daquela noite fria de quinta-feira, no meio de uma cidade mágica, no meio da Europa.
Imaginem a maravilha de acompanhar de camarote o máximo da emoção que ocorreu quando os alemães orientais, consumidos em gana de liberdade, acercaram-se dos portões fatídicos, gritando, resolutos: "Deixem passar, deixem passar!", e então titubearam percebendo as 20 metralhadoras apontadas para eles. O instante de indefinição foi quebrado por encanto com o rumor que cresceu como um tsunami vindo do lado ocidental, onde os irmãos de sangue, saudosos de abraços, bradavam: "Venham! Venham!".
E eles foram. Num raro momento em que uma multidão torturada durante décadas é capaz de reconhecer, instantaneamente, quando a submissão e a morte têm o mesmo significado.
Por sorte, estava naquela tarde ensolarada de Tóquio, quando o Renato aparou na direita e bateu de esquerda no contrapé do goleiro do Hamburgo, mas eu queria muito ter estado na noite gelada de Berlim, seis anos depois.