Nunca antes na história tantos universitários brasileiros foram enviados a tantos países para se especializarem em tantas áreas de conhecimento. Mais de 74 mil estudantes - 5,7 mil deles gaúchos - frequentaram ou continuam em sala de aula na Europa, na América do Norte, na Ásia, na África e na Oceania, nos últimos quatro anos. Se a lição for aproveitada, poderá render um salto nas ciências do país.
O Brasil inaugurou o ciclo de se aprimorar no Exterior em 2011, ao criar o programa Ciência sem Fronteiras. Desde então, foram investidos R$ 4 bilhões em bolsas, que vão da graduação ao pós-doutorado, em mais de 40 países. E as jornadas ao estrangeiro devem ser ampliadas. O presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Almeida Guimarães, anuncia que se chegará a 101 mil bolsas no próximo ano. Para 2018, a meta é dobrar para 200 mil benefícios.
- O programa é um sucesso. A avaliação que temos das universidades estrangeiras é positiva - destaca Guimarães, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Com duração anual, as bolsas são exclusivas para ciência e tecnologia, contemplando 18 áreas do conhecimento, boa parte direcionada à inovação da indústria. Guimarães observa que o retorno, tanto para a produção tecnológica quanto para a academia, não será imediato - até porque 42 mil universitários seguem no estrangeiro. O programa tem problemas - alguns preocupantes.
Oito bolsistas morreram, desde 2011, de causas variadas. Uma jovem de Santa Catarina se acidentou em uma estação de esqui de Tolouse, na França. Um rapaz se suicidou. Guimarães assegura que as famílias foram amparadas. As embaixadas brasileiras estão orientadas a monitorar a estada dos universitários e a intervir em casos de urgência.
123 desligados por não falarem inglês
Outro percalço foi a necessidade de desligar 123 bolsistas que não dominavam o inglês o suficiente. Eles queriam estudar em Portugal, mas a Capes resolveu suspender o curso de graduação naquele país devido ao excesso de candidatos e para incentivar o aprendizado da segunda língua. Eles chegaram a receber um curso de seis meses, gratuito, mas não conseguiram se habilitar a tempo.
- Cerca de 8,5 mil se inscreveram para Portugal, mas tiveram de ser enviados para outros países, como Austrália e Canadá - diz Guimarães.
Atualmente, 2.165 universidades internacionais participam do intercâmbio. Do ranking das cem melhores do mundo formulado pela revista Times Higher Education, não há brasileiros apenas em uma instituição britânica. O número de 74 mil bolsistas impressiona na comparação com o histórico brasileiro. Nas décadas de 1960 e 1970, a média anual era de 224.
Entre 2006 e 2010, não passava de 5 mil. Os anfitriões elogiam os brasileiros. A diretora de relações internacionais da Universidade de Bolonha (Itália), Romina Kniaz, ressalta que são "ativos e autônomos", dedicados aos estudos e integrados no convívio com alunos de outras etnias. Para Jay Singh, da Universidade Politécnica da Califórnia (EUA), enriquecem e diversificam as discussões em classe.
- São extremamente entusiasmados - testemunha Jay.
Bernardo aprendeu na Coreia a pesquisar com garra de lutador
Nas primeiras aulas no Instituto Avançado de Ciências e Tecnologia (Kaist), na cidade de Daejeon, na Coreia do Sul, Bernardo Bortolotto Ilha surpreendia-se quando os colegas erguiam o punho direito e bradavam "fighting!" antes de iniciarem uma pesquisa. Era a senha de que iriam brigar - em inglês, fight significa lutar - por descobertas científicas. Os espantos se sucederam.
Estudante de Engenharia Metalúrgica na UFRGS, Bernardo testemunhou alunos imersos na biblioteca de Kaist, em pleno domingo, devorando livros sem qualquer contrariedade. Alguns chegavam a dormir na biblioteca. O resultado de tanta dedicação foi constatado por Bernardo enquanto esteve em Kaist, de fevereiro de 2012 a fevereiro de 2013.
Viu projetos que logo estarão a serviço das pessoas, como microchips quase invisíveis que aumentam a velocidade da transmissão de dados de computadores e celulares. Protótipos de robôs que poderão atuar como balconistas de lojas. Mais as inovações em motores de automóveis, cedidos pelas montadoras para as aulas práticas.
- As disciplinas incluem alta tecnologia e muita pesquisa - conta Bernardo, hoje com 23 anos.
Em Kaist, tinha três horas de aula teórica, em média, e pelo menos o dobro de tempo para a pesquisa. No alojamento do campus, convivia com espanhóis, holandeses, russos, alemães, italianos, norte-americanos, latinos e um mongol. Comunicavam-se em inglês e espanhol, mas Bernardo resolveu aprender um pouco de coreano para melhorar a integração.
Nascido em Santana do Livramento, acostumado à fartura de carnes assadas da Fronteira Oeste, Bernardo mais uma vez se abismou, desta vez com jeito asiático de churrasquear. Preparam uma tigela com carvão incandescente, sobre a qual tostam pedaços de bife, tão finos e macios que depois são cortados a tesoura. Para brindar, preferem o soju, semelhante ao saquê japonês.
- Adoram esse bifinho com destilado de arroz - diz Bernardo, qualificando os coreanos de "inteligentes, receptivos e educados".
Bernardo confia que o aprendizado sobre nanociências (estudo de partículas minúsculas), semicondutores, robótica e engenharia de materiais abrirá portas em Porto Alegre. Ele já faz estágio em uma siderúrgica.
- Para o meu currículo, sem dúvida, foi bom - comemora.
Foto: Marcelo Oliveira, Agência RBS
Diego trouxe ideias do Vale do Silício para o Vale do Taquari
Foi operando máquinas industriais, em avançados laboratórios da Universidade Politécnica da Califórnia (Estados Unidos), que Diego Coletti Schuck mais aprendeu sobre Engenharia de Produção. Entre setembro de 2012 e agosto do ano passado, Diego, hoje com 26 anos, provou o estilo americano de ensinar.
Aluno do Centro Universitário Univates, de Lajeado, foi um dos pioneiros a se candidatar no programa Ciência sem Fronteiras.
- Pedi para ser direcionado para as áreas de Engenharia Industrial e Mecânica - lembra.
Na Califórnia, Diego tinha no máximo duas horas de aula teórica por dia. Depois, ia para o laboratório da politécnica mexer em máquinas injetoras, de sopro e fundição. Podia consultar a biblioteca durante 24 horas, inclusive aos domingos. Morou no campus, como a quase totalidade dos estudantes, dividindo as dependências com um americano, um norueguês e um baiano.
Notou nos companheiros o orgulho em vestir a camiseta com o logotipo da universidade. Além das pesquisas em laboratório, passou um dia dentro da Google e visitou empresas no Vale do Silício, na Califórnia. Também fez um estágio na fábrica da Weg, em Minneapolis, sobre motores e geradores. Antes de viajar, achava os americanos "individualistas e consumistas", mas mudou de conceito.
- Valorizam muito a disciplina e a organização. Se falam uma coisa, cumprem. Mantenho contatos com professores e amigos até hoje - relata Diego.
De volta a Lajeado, está utilizando o que aprendeu na fábrica de tampas plásticas para embalagem de aerosol (desodorante, spray) que os pais, Felipe Shuck e Sandra Coletti, têm no município do Vale do Rio Taquari.
Carine aplica em Bento frutos colhidos nos vinhedos de Bolonha
As famílias que plantam uva e não podem contratar técnicos para cuidar da saúde das videiras poderão ser beneficiadas com o aprendizado que a estudante Carine Rusin obteve na Universidade de Bolonha (Unibo), na Itália. De volta ao Rio Grande do Sul, ela se dedica a erradicar a chamada "doença do tronco", que mata lentamente os parreirais.
Aos 22 anos, nascida na pequena Relvado (região da Encosta da Serra), Carine se aperfeiçoou em frutas no Dipartimento di Scienze Agrarie (Departamento de Ciências Agrárias), em Bolonha. Filha de descendentes de italianos, concentrou-se no estudo das videiras, já pensando no retorno que poderia dar aos plantadores daqui.
- Após retornar da Itália, comecei a pesquisar sobre esse problema que vem destruindo vinhedos na Serra - diz ela.
Aluna do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), no campus de Bento Gonçalves, Carine fez estágio de um ano na Itália, até julho de 2013. Procurou entender como os fungos danificam as raízes e o tronco das videiras, asfixiando-as lentamente.
Acredita que a solução esteja em mudas mais robustas, que saiam dos viveiros sem a doença. Em Bolonha, na Unibo, teve aulas práticas nos parreirais, desde a poda à colheita. Pesquisou em laboratórios e áreas experimentais, percebendo que a relação entre aluno e professor prima pela formalidade, ao contrário do estilo mais próximo que ocorre no Brasil.
- Ser professor é um cargo muito importante na Itália. Só são considerados como tal após muita experiência - observa Carine.
O Ciência sem Fronteiras proporcionou a primeira viagem internacional de Carine, o que exigiu controle emocional para permanecer um ano longe da família. Ela imaginava que era fluente no italiano, mas se equivocou. Teve de estudar para acompanhar as aulas.
Ao finalizar a bolsa, Carine achou mais difícil se acostumar com a volta do que a ida. Já se habituara à cultura italiana, ao convívio com alunos e professores de diferentes lugares, à estrutura da cidade. Retornou mais confiante e disposta a enfrentar desafios.
- Foi uma oportunidade rara de crescimento pessoal - destaca a aluna do IFRS.
Foto: Carine Rusin, Arquivo pessoal
No Japão, Pedro tateou o futuro da tecnologia
A ponta de um alfinete parece gigantesca se for comparada aos nanotubos de carbono que Pedro da Costa Machado, 23 anos, pesquisou na Universidade de Tohoku, no Japão. O material vem sendo testado como substituto mais eficiente para o silício nos circuitos de computadores.
Pedro estudou por 12 meses na Tohoku, tendo voltado ao campus da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) há dois meses. Ainda está impressionado com os avanços tecnológicos que viu no Japão. O mesmo nanotubo de carbono está sendo experimentado no tratamento de saúde das pessoas: é inserido direto na célula doente, como um condutor que facilita a aplicação do medicamento no local exato.
A intenção é atacar o mal na origem, apressando a cura e reduzindo os efeitos colaterais. O gaúcho ficou na cidade de Sendai, a sede da Tohoku, a uma hora de viagem de Tóquio pelo trem-bala. Morou em um alojamento de 16 metros quadrados - menor que um JK brasileiro. Pedro nada sabia de japonês, aprendeu expressões básicas para se localizar no cardápio dos bares. Sabe que a culinária nipônica é conceituada, mas não apreciou sopa de macarrão, bolinho de polvo, menos ainda o "anko", um doce que engana como se fosse chocolate, mas é elaborado com feijão.
- Perdi 10 quilos ao natural, sem fazer dieta - comenta.
O estágio no Tohoku confirmou o que o aluno da Furg antevia: deseja seguir a carreira acadêmica. Pretende retomar as pesquisas com os nanotubos de carbono, voltaria correndo ao Japão para se especializar, mesmo sob risco de emagrecer.
Foto: Pedro da Costa Machado, Arquivo pessoal
Letícia quer desenvolver a soja gaúcha
As aulas que Letícia Winke Dias teve sobre a identificação dos genes do tomate, em Toulouse, na França, já são úteis para ao Rio Grande do Sul. Ela aproveita o conhecimento adquirido no sequenciamento genético para fazer algo similar com a soja plantada em áreas alagadas. Servirá para testar a resistência do grão que move o agronegócio gaúcho.
Engenheira agrônoma pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Letícia se especializou na França entre julho de 2012 e fevereiro de 2013. Frequentou o laboratório de Genética e Biotecnologia de Frutas (GBF), da Escola Nacional Superior de Agronomia de Toulouse (Ensat). Concentrou-se nas pesquisas sobre o genoma do tomate. Ela destaca que o sequenciamento genético permite identificar os frutos em condições de serem colhidos e aumenta a produtividade e a durabilidade deles.
- Na França, o tomate que será vendido ao consumidor deve estar em ótimas condições - diz a agrônoma, hoje com 29 anos.
A partir da experiência com tomates em Tolouse, Letícia fará o sequenciamento dos genes da soja semeada em várzeas, como parte do seu doutorado. A pesquisa será proveitosa aos produtores que estão plantando soja em áreas de arroz irrigado. A substituição dos cereais está em ritmo acelerado no sul do Estado, onde fica a UFPel.
- Quero verificar como a soja se desenvolve na várzea - anuncia.
Foto: Nauro Júnior, Agência RBS
Rafael trouxe da Áustria aprendizado e reconhecimento
A dedicação foi tamanha que Rafael Bohn Reckziegel leu, releu, estudou e esquadrinhou a mesma apostila por 10 vezes, até dominar as expressões técnicas sobre Engenharia Florestal. Tanto empenho foi recompensado pelas avaliações que ganhou no Instituto de Ecologia Florestal (IFE) da Universidade de Boku, em Viena, na Áustria.
Entre outubro de 2012 e setembro de 2013, Rafael esmerou-se nas pesquisas sobre micorriza - a associação de mútuo benefício entre fungos e raízes de plantas diferentes. Acampou nas montanhas para entender o mundo subterrâneo da floresta e outros assuntos, como a competição entre gramas e arbustos pelo mesmo espaço. O êxito foi instantâneo.
- Apresentamos um resumo da pesquisa em um congresso na Dinamarca - conta Rafael, aluno de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Na Universidade de Boku, Rafael foi aceito para dois semestres. Cumpriu 38 créditos, obtendo o primeiro ou o segundo melhor conceito em todos eles. De volta à UFSM, planeja se tornar professor, aprofundar-se em micorrizas - pouco estudadas no Brasil.
O que causou algum desapontamento foi a reação de parte dos colegas. Ouviu chacotas de que estivera "fazendo turismo sem fronteiras" na Áustria. Mas reagiu com humor e tratou de repassar a experiência a quem desejasse.
- O que a Áustria me ensinou é que deve haver respeito, entendimento entre as pessoas, trabalho, seriedade e qualidade de vida - diz o bolsista.
Foto: Rafael Bohn Reckziegel, Arquivo pessoal
Camilla encontrou nos Açores a autonomia para sua pesquisa
A porto-alegrense Camilla Hotta Giordani, 25 anos, ganhou mais autonomia para investigar a qualidade da água de rios e mares depois de se especializar na Universidade dos Açores. No curso de pesquisa aquática, aprendeu a mergulhar em busca de esponjas, as quais indicam o grau de poluição.
Aluna da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas, Camilla se aprimorou durante um ano no instituto açoriano. Voltou ao Brasil em agosto de 2013. Antes da experiência, Camilla precisava do auxílio de mergulhadores para apanhar amostras de esponjas, que podem estar a 18 metros da superfície nos oceanos.
- Agora, eu mesma posso ir a campo, antes dependia de alguém para fazer a coleta - diz.
As relações com outras estudantes também foram instrutivas. A bolsista gaúcha adorou a dieta à base de frutos do mar no arquipélago dos Açores, a generosa suculência das postas de bacalhau e as castanhas assadas. Para retribuir a hospitalidade, Camilla preparou o prato que mais agrada o paladar brasileiro: feijão com arroz bem temperados.
- Os colegas aprovaram - garante a estudante.
Foto: Camilla Hotta Giordani, Arquivo pessoal
Henrique buscou ideias para indústria no Canadá
Aluno de Engenharia de Produção na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Henrique Wulff Al-Alam, 20 anos, voltou do Canadá há três meses, consciente de que estudantes e professores devem ser mais profissionais.
- O que mais me chamou a atenção foram o respeito com o professor, o silêncio na sala de aula e a responsabilidade em cumprir prazos - conta o estudante, após a experiência na Universidade de Ryerson, em Toronto.
Houve contratempos, que a vida de bolsista não é moleza. Quando a sensação térmica submergiu a -39ºC, Henrique conheceu o chamado "frio da depressão". A recomendação era cercar- se de amigos e manter-se ativo.
Henrique tinha dúvidas sobre a eficiência do Ciência sem Fronteiras. Mudou de posição ao cursar a Ryerson. Não sentiu dificuldades nas aulas de conteúdo - por isso elogia a UFPel. Mas percebeu um abismo em relação às instalações e ao ensino prático. Eram quatro horas de aulas teóricas, o dobro do tempo em pesquisas ou lições de casa, mais ações dentro de fábricas.
Henrique pôde se aprimorar como futuro engenheiro de produção em temas como controle de qualidade e otimização de processos. Voltou convencido de que a saída é inovar a indústria, para tornar o país mais competitivo.
Foto: Nauro Júnior, Agência RBS
O Brasil no mundo
Oito estudantes que viajaram pelo Ciência sem Fronteiras contam o que aprenderam no Exterior
Mais de 74 mil estudantes, incluindo 5,7 mil gaúchos, fizeram intercâmbio pelo programa desde 2012
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