O Ministério da Saúde gastou apenas 29% da verba emergencial prevista para combater o coronavírus a partir de março, aponta auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). Dos R$ 38,9 bilhões prometidos por meio de uma ação orçamentária específica criada em março, mês em que a Organização Mundial e Saúde (OMS) anunciou a pandemia, R$ 11,4 bilhões saíram dos cofres federais até 25 de junho — quando já havia 55 mil mortos e 1,2 milhão infecções notificadas no país.
Os valores foram anunciados por meio de medidas provisórias que abriram créditos extraordinários, com o objetivo de fortalecer o atendimento ambulatorial e hospitalar. Tanto as despesas feitas diretamente pelo ministério quanto as realizadas por meio de transferência a Estados e municípios ficaram muito aquém do prometido.
No primeiro caso, os pagamentos efetivamente feitos estavam em 11,4% do previsto. Os governos estaduais receberam 39% do dinheiro anunciado e os municipais, 36%. A lentidão na execução se deu num cenário de descontinuidade administrativa e de conflitos com gestores locais.
Desde março, o presidente Jair Bolsonaro minimiza a gravidade da epidemia. Ele criticou medidas de isolamento social tomadas por prefeitos e governadores para conter a pandemia. Dois ministros da Saúde (os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich) deixaram o comando da pasta por de discordâncias com Bolsonaro. Desde maio, o cargo é ocupado interinamente pelo general Eduardo Pazuello, especialista em logística e sem experiência na área de saúde.
Por causa do ritmo na aplicação dos recursos, o Ministério Público Federal (MPF) abriu inquérito para apurar possível insuficiência e lentidão da execução orçamentária do ministério, além de omissão no socorro financeiro aos Estados e municípios. O órgão e o próprio TCU enviaram questionamentos à pasta, especialmente sobre a diminuição das transferências a estados e municípios em abril, quando a epidemia acelerava; aos parâmetros para definição do montante a ser enviado aos governos locais; e ao planejamento e cronograma para o repasse dos recursos disponíveis. O relatório, concluído pelo TCU na quarta-feira (15), diz que a Saúde não apresentou as respostas.
O documento, obtido pela reportagem, será julgado nesta quarta (22) e propõe aos ministros da Corte que determinem a apresentação, em 15 dias, de "toda a lógica de financiamento dos fundos estaduais e municipais de saúde". Isso inclui motivação, critérios e eventuais memórias de cálculo para definição das dotações orçamentárias, regras, processos e áreas responsáveis pela liberação dos recursos.
O TCU avaliou se há correlação entre o volume de dinheiro enviado pela pasta aos gestores locais e os indicadores da doença, mas não encontrou. É o caso, por exemplo, do montante total per capita transferido aos estados em relação às taxas de mortalidade.
"Chama a atenção o fato de Pará e Rio de Janeiro terem, respectivamente, a segunda e a terceira maior taxa de mortalidade por Covid-19 (31,4 e 28,1 mortes por 10 mil habitantes), conforme dados informados pelo Ministério da Saúde em 28 de maio, mas serem duas das três unidades da federação que menos receberam recursos em termos per capita para a pandemia", diz trecho do relatório.
Também não se constatou correlação entre o montante repassado e a disponibilidade local de leitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a quantidade de internações em razão de gripe ou pneumonia, o número de hospitalizados por doenças respiratórias e circulatórias, entre outros.
Procurado pela reportagem, o ministério não se pronunciou nesta terça-feira (21).
O TCU pediu, mas a pasta não apresentou estudos para embasar a distribuição de recursos. Só informou que a verba é rateada segundo alguns critérios, como o populacional (R$ 2 a R$ 5 por habitante, conforme o município).
Os auditores querem ainda que o ministério seja obrigado, também em 15 dias, a mostrar se há uma estratégia para aquisições de materiais e serviços, apresentando documentos que a formalizem. Ao averiguar os gastos diretos do ministério — cujo objetivo é a compra de equipamentos de proteção individual, respiradores e insumos para testes, entre outros—, constataram que somente R$ 1,3 bilhão foi aplicado, de um total de R$ 11,4 bilhões.
A pasta justificou ao tribunal que enfrenta dificuldades para fechar as aquisições, dado o crescimento vertiginoso da demanda pelos produtos em todo o mundo.
O maior gasto previsto, de R$ 1 bilhão, teve de ser cancelado por indícios de fraude. O governo fechou em abril contrato para adquirir 15 mil ventiladores pulmonares, ao custo de R$ 67,6 mil cada, com a BioCiência Produtos Científicos Ltda — que seria representante da empresa chinesa Santos-Produtos do Brasil Companhia de Investimento e de Comércio Ltda (Macau). No mês seguinte, o cancelou por inexecução. A Santos-Produtos do Brasil (Macau), fornecedora dos equipamentos, informou que em nenhum momento conferiu poderes para a BioCiência Produtos representá-la e assinar o contrato em seu nome. A Folha não localizou representantes da BioCiência.
A auditoria do TCU é a segunda já feita para acompanhar a execução de gastos na estrutura montada para o combate ao coronavírus. O tribunal aponta atraso no cronograma de distribuição dos respiradores efetivamente comprados.
Até a data da elaboração do relatório, a pasta informou ter destinado 4.857 respiradores a hospitais e outras unidades de saúde, muito menos do que o previsto no cronograma de entrega das empresas contratadas para o fornecimento (7.070 até o fim de junho).
Há também deficiências de transparência, como na divulgação de dados sobre a ocupação de leitos. Segundo o TCU, o ministério não diz na internet a disponibilidade por estado/município tanto das vagas em UTI quanto das demais para tratamento da covid-19.