Em meados do ano passado, a heroína que circulava por esta cidade portuária inglesa tinha algo diferente, mas a maioria dos usuários só percebeu que era algo muito errado quando 16 morreram de overdose.
Quem experimentou descreveu um pico "forte" e "de muita euforia", seguido de um efeito nocaute repentino, o mesmo que matou dezenas de britânicos nos últimos 12 meses e levou centenas para o hospital.
A potência extra vem do fentanil, analgésico opioide de 50 a 100 vezes mais forte que a morfina, e que foi misturado à heroína. O remédio já matou milhares de norte-americanos, incluindo os roqueiros Prince e Tom Petty, mas o perigo mortal que representa pouco faz para deter os adictos de Kingston Upon Hull, conhecida localmente apenas como Hull. De fato, muitos parecem ter se tornado insaciáveis.
—Ele faz a dor desaparecer — conta Chris, 32 anos, sem-teto que mora na cidade e consumidor de heroína há mais de oito anos.
O Reino Unido já tem o maior número de dependentes de heroína da Europa e, no ano passado, as mortes relacionadas ao consumo atingiram um nível recorde na Inglaterra e no País de Gales: foram 3.744 óbitos acarretados pela droga e outros opioides. Embora seja um número pequeno em comparação com a devastação nos EUA, onde mais de 100 pessoas morrem por dia devido ao consumo abusivo, as autoridades temem que o fentanil se torne a próxima droga mais perigosa em nível nacional.
—Aqui estão receitando opioide para a dor, mas nada que se compare aos EUA, onde versões fortíssimas estão sendo recomendadas em larga escala. Se, por um lado, é um fato positivo, por outro, já temos a taxa de mortalidade relacionada a drogas mai alta do continente —afirma Prun Bijral, diretor da ONG Change, Grow, Live, que combate o abuso de substâncias psicoativas.
Nenhum outro lugar vem sofrendo tanto com o vício em heroína, fentanil e opioides em geral como Hull, um antigo núcleo pesqueiro de 260 mil habitantes a cerca de 240 quilômetros ao norte de Londres que paradoxalmente foi nomeada, em 2017, a "Cidade da Cultura" britânica. Em um amanhã fria e garoenta, não faz muito tempo, diversos viciados se amontoavam, deitados, sob a placa verde enorme que dá as boas-vindas na entrada da cidade, com as garrafas e drogas escondidas sob as cobertas e outros pertences. A cena se repetia nas fachadas dos prédios da rua principal.
Desde que a indústria pesqueira entrou em colapso, na década de 70, o município sofre com uma das taxas de desemprego – atualmente em 8,9% – e de dependência mais altas do país. Para piorar, as conexões de transporte e acesso ao porto e a duas das principais rodovias da região facilitam o tráfico.
Há alguns anos, ensaiou uma recuperação com uma série de investimentos, incluindo uma fazenda de energia eólica de US$400 milhões e um centro de pesquisas de US$30 milhões, cujo objetivo é desenvolver novos tratamentos para os adictos.
Entretanto, Hull continua a atrair a atenção nacional por causa de questões relacionadas ao abuso de drogas, agravadas agora com a disseminação do fentanil, considerado causador de pelo menos 60 mortes no país, segundo a Agência Nacional do Crime, e despontando como opção favorita entre pessoas como Chris.
Neste dia deprimente, ele estava deitado na porta de um prédio abandonado, encostado no saco plástico que contém seus pertences, as mãos tremendo violentamente.
Depois de se recusar a divulgar o sobrenome por não querer que a família saiba de seu vício, o rapaz revela que experimentou heroína pela primeira vez por ter sido rejeitado em uma entrevista de emprego, depois de dois anos parado.
—Fiquei tão chapado que descontei toda a raiva na minha namorada. Dei com a cabeça dela na parede, larguei ela lá e fui comprar heroína. Não parei mais.
Quando provou fentanil pela primeira vez, não sabia exatamente o que era.
—Tomei um pico e a impressão foi de ter explodido, tipo, é tão forte que parece dinamite, cara — explica, descrevendo sem querer por que os especialistas consideram a droga tão perigosa.
Muita gente ali disse ter desmaiado depois de experimentar o opioide e jurou nunca mais voltar a usá-lo; porém, há vários outros que, como Chris, vão atrás dele feito doidos, mesmo com a operação policial recente que diminuiu o suprimento que chega à cidade.
Embora a polícia reconheça o tamanho e a gravidade do problema, foi relativamente fácil e barato para um dependente comprar a droga, como a tarde passada ao lado de Chris comprovou.
Ele falou abertamente do vício e admitiu que tudo o que fatura com as esmolas – uma média de US$40 por dia – gasta com bebida alcoólica e drogas, pois ganha refeições gratuitas do sopão local, além de outras doações.
Estando na rua, de vez em quando para os passantes para pedir um trocado, mas naquele dia tinha o suficiente para garantir a próxima dose que, segundo ele, custou doze libras, ou US$16.
Depois de pegar a droga com o traficante, foi para a casa de um amigo, Billy Kenwood, que também é viciado, mas que parou com o fentanil depois de quase ter morrido de overdose no ano passado. Enquanto contava o incidente, Chris ia se preparando, prendendo o braço para achar uma veia, aquecendo a mistura e finalmente injetando o líquido.
—Pronto, aí, felicidade pura — disse antes de capotar aos poucos na cadeira.
— Tem gente que apaga assim depois de tomar fentanil e não acorda mais — comenta Kenwood.
Um casal de sem-teto que dorme no centro conta que já perdeu seis amigos para a overdose no último ano. Ambos experimentaram a droga e, como a maioria dos outros dependentes e ex-usuários entrevistados para este artigo, afirmam terem gostado.
Só que também passaram do ponto.
— Acordei dentro de uma ambulância e me disseram que eu tinha tomado fentanil. Mais dois ou três minutos e eu teria morrido — conta Mark Stevenson, 45 anos.
Os dois dizem que não consomem nem heroína, nem fentanil há vários meses, mas revelam que muitos amigos estão sofrendo com graves sintomas de abstinência, como consequência da queda do fornecimento resultante do reforço da ação policial.
—Um amigo estava injetando quatro, cinco vezes mais heroína para conseguir o mesmo efeito do fentanil — acrescenta Stevenson.
Há relatos de gangues que começaram a fabricar o opioide em laboratórios caseiros para suprir a demanda. O Reino Unido é responsável pelo maior número de vendas da substância na chamada dark web na Europa, com mil transações feitas nos últimos meses, de acordo com a pesquisa do Instituto da Internet de Oxford.
— O faturamento é alto; com um volume mínimo dá para fazer várias doses, ou seja, o potencial para várias vendas individuais é bem alto — explica Bijral.
Um opioide ainda mais letal, conhecido como carfentanil – cem vezes mais potente que o fentanil e utilizado como tranquilizante para elefantes –, já foi citado como responsável por várias overdoses fatais em Hull. A população confirma que os policiais deram várias batidas nos últimos meses para tentar suspender o suprimento, mas um ex-adicto afirma que quem procurar direito, ainda consegue achar.
Recentemente, a prefeitura interditou um pavilhão que servia de abrigo para vários viciados no centro, mas anunciou que ofereceria apoio e acomodação para aqueles que costumavam ficar ali.
Alguns preferiram ficar em albergues, outros se acomodaram em prédios abandonados, contando com a ajuda de voluntários, mas em ambos os casos não há tolerância para o consumo de drogas e bebidas alcoólicas, o que fez com que diversas pessoas preferissem se virar por conta própria.
Por causa disso, Chris saiu de Hull, onde não é visto há mais de um mês.
—O fentanil acabou, ele foi embora para o norte atrás de mais — diz Kenwood.
Por Ceylan Yeginsu