Um colosso de aço e concreto descansa, inclinado sobre ladrilhos azuis na grama, desde 1996, no caminho para o Túnel da Conceição, nas proximidades da Santa Casa de Misericórdia, no Centro Histórico, em Porto Alegre. A despeito de forma e dimensões notáveis, a escultura Túnel do Túnel acaba despercebida em meio ao frenesi do tráfego em uma das principais vias da cidade.
Como ela, tantas outras peças que fazem da Capital uma galeria de arte a céu aberto, com 285 monumentos inventariados, tornam-se invisíveis, inacessíveis ou desconhecidas para muitos porto-alegrenses, distribuídas entre ruas, prédios e outros elementos da paisagem urbana.
— Passo por aqui todos os dias, mas não entendo o que significa — descreve a atendente de cafeteria Pâmela Pereira, 32 anos, a respeito do trabalho assinado pela artista plástica Tina Felice.
Pâmela percorre, ida e volta, o caminho entre a parada de ônibus para Viamão, onde mora, e o complexo hospitalar no qual trabalha, na Capital, sem perceber se tratar de arte urbana.
Ainda no coração da cidade, um aparente bate-papo descontraído une os escritores Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade no Monumento à Literatura Brasileira, localizado desde 2001 na Praça da Alfândega, sobre as pedrinhas portuguesas da Rua da Praia. É uma das mais celebradas obras do artista plástico austríaco naturalizado brasileiro Francisco "Xico" Stockinger, um dos maiores expoentes da arte urbana em Porto Alegre. Com coautoria de Eloisa Tregnago, esta, sim, é uma das mais famosas e fotografadas da Capital.
Mas poucos conhecem e sabem que é do mesmo artista, por exemplo, o Painel Homens e Touros, localizado não muito distante dali, na Praça Dom Sebastião, no bairro Independência. A obra é composta por cinco peças metálicas e foi encomendada na década de 1970, pela prefeitura, para cobrir a estrutura de concreto que funciona como respiradouro sobre o Túnel da Conceição.
A instalação exibe a imagem de dois touros em oposição de combate e representações de cavaleiro, sob três diferentes perspectivas.
— É linda. Não sabia que é deste artista. Passo por aqui todos os dias e nunca deixo de apreciar. Arte faz bem para o visual da cidade — comenta a psicóloga Julice Medeiros, 49 anos.
Nos arredores da Usina do Gasômetro, a servidora Heloísa Taborda, 57 anos, olha com perplexidade para as cinco peças de rocha pálida que se assemelham a poltronas rodeando uma mesa de centro, como numa sala de estar em Bedrock, a cidade dos Flintstones. E não hesita em admitir:
— Nem sabia que era arte. Pensei que eram somente pedregulhos deixados na grama do canteiro.
Trata-se da Escultura em Granito, mais uma de Xico Stockinger. A obra havia sido instalada inicialmente no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, mas, atualmente, ornamenta a rótula que conduz ao bairro Praia de Belas.
Movimento intenso das metrópoles "esconde" intervenções
Integrante da Diretoria de Patrimônio e Memória da Secretaria Municipal da Cultura e Economia Criativa de Porto Alegre, a arquiteta Manuela Costa destaca que a existência de um inventário com 285 itens destacados como monumentos e peças de arte urbana demonstra o apreço da cidade pelos bens culturais.
— É um número expressivo, considerando que nesse rol encontram-se peças de diferentes momentos da história de Porto Alegre. Desde objetos que compunham o mobiliário urbano antigo até obras de arte contemporâneas ou de períodos mais recentes — avalia.
Manuela pondera, no entanto, que o ambiente visualmente sobrecarregado da cidade acaba por desvirtuar a arte pública, "que perde protagonismo no espaço citadino, desencaminhando-se sua capacidade de transmissão e comunicação".
Autora da Escultura Túnel do Túnel, a artista plástica Tina Felice lamenta que sua obra mais representativa, concebida para ser o "portal para um túnel imaginário", não seja mais acessível ao reconhecimento da comunidade.
A arte urbana traz suavidade ao cenário composto por formas ásperas. É uma pena que tais elementos não recebam um cuidado mais delicado para que se destaquem em meio a tanta informação visual em nossos espaços urbanos.
TINA FELICE
Autora da escultura Túnel do Túnel
A arquiteta de Patrimônio e Memória de Porto Alegre destaca que, em comparação a outros centros brasileiros, a Capital tem menor quantitativo de bens protegidos pelas normas de patrimônio histórico-cultural.
— Nota-se uma consagração inferior no que se refere aos instrumentos legais de proteção como o tombamento, por exemplo — define Manuela.
Manuela ressalva que a comunicação visual em áreas com intensa mobilidade e densa atividade econômica é típica das metrópoles, e que mudar os locais de instalação não é melhor opção.
A eventual mudança acaba por desconstituir sítios históricos importantes. Daí a necessidade de preservação e conservação não somente das obras, mas também dos lugares que as abrigam.
MANUELA COSTA
Arquiteta integrante da Diretoria de Patrimônio e Memória da Secretaria Municipal da Cultura e Economia Criativa
Entre peças famosas e outras nem tanto, uma galeria urbana
A lista de monumentos, obras de arte e marcos comemorativos em espaço público e aberto de Porto Alegre é administrada pela Secretaria Municipal da Cultura e Economia Criativa da Capital. Nela, constam as denominações das peças e dos sítios onde estão instaladas.
Saiba sobre algumas delas:
Memorial Pessoas Imprescindíveis
A figura de dois braços atados, segurando uma bandeira, instalada no Parque Marinha do Brasil desde 2011, simboliza a tragédia de um dos principais personagens da história gaúcha nos Anos de Chumbo: o sargento Manoel Raymundo Soares.
Ele foi a primeira pessoa reconhecidamente presa e morta pelo regime militar no Estado. Seu corpo foi encontrado por pescadores na foz do Rio Jacuí, com as pernas e as mãos imobilizadas por cordas. O crime notabilizou-se como "o caso das mãos amarradas".
O monumento é uma obra da artista plástica gaúcha Cristina Pozzobon e compõe acervo de 26 trabalhos encomendados pela Secretaria de Direitos Humanos da União, relembrando outros casos de "pessoas imprescindíveis".
Monumento aos Açorianos
Obra de arte criada pelo escultor Carlos Tenius simboliza a chegada dos 60 casais que deram início ao povoamento do Porto dos Casais, nome originário que antecedeu a atual designação de Porto Alegre. O Monumento aos Açorianos possui 15 metros de altura por 24 metros de comprimento e está instalado, desde 1974, no Largo dos Açorianos.
Monumento ao Expedicionário
O Monumento ao Expedicionário é uma peça histórica assinada por Antônio Caringi, autor da Estátua do Laçador, inaugurada em 1957. A estrutura de granito em forma de arco duplo, com esculturas em relevo representando soldados de diversas armas e a figura mitológica Atena. Em sua fronte, traz a inscrição "À Força Expedicionária Brasileira - A Pátria Agradecida". Está instalado no Parque Farroupilha, a Redenção.
Fonte Talavera de La Reina
A Fonte Talavera de La Reina, situada em frente ao Paço Municipal de Porto Alegre, na Praça Montevidéu, foi um presente ofertado pela comunidade espanhola residente na Capital para marcar o centenário da Revolução Farroupilha, em 1935. A autoria é do artista e ceramista espanhol Juan Ruiz de Luna. A fonte sinaliza o Marco Zero de Porto Alegre.
Estátua Equestre do Marechal Osório
O monumento está localizado na Praça da Alfândega desde 1933. Criada como homenagem a Manuel Luís Osório, patrono da Cavalaria do Exército Brasileiro, a obra do escultor carioca Hildegardo Leão Veloso consiste em uma grande base de granito cercada por um espelho d'água, com uma estátua equestre do general no topo.
Monumento a Júlio de Castilhos
Localizada na Praça da Matriz, a obra é uma homenagem ao líder gaúcho Júlio de Castilhos, fundador de uma tradição política associada ao positivismo. A construção tem sua engenharia creditada ao arquiteto Affonso Hebert, e a arte de esculturas, ao artista Jacob Aloys Friedrichs. O monumento é uma composição complexa de simbologias representativas da constituição histórica do Estado.
Chafariz Menino da Cornucópia
A escultura O Menino da Cornucópia, peça que ornamenta o alto do Chafariz do Roseiral, é uma representação de Tritão, filho de Poseidon e Anfítrite, deuses da mitologia grega que exerciam sua soberania e seus poderes nos mares e oceanos. A obra foi originalmente esculpida em bronze e havia sido instalada na Praça XV de Novembro.
Em decorrência de mudanças urbanísticas promovidas no Centro, em 1925, a estátua ganhou nova morada, sendo instalada na Redenção, ao final dos anos 1930. O chafariz está localizado próximo das avenidas João Pessoa e Paulo Gama. Atualmente, escultura foi removida para reparos.
Torre o Petróleo É Nosso
Localizado na Praça da Alfândega, próximo ao passeio da Rua Sete de Setembro, um obelisco metálico desperta a observação. A peça foi instalada em 1963, por iniciativa de entidades estudantis, em comemoração ao 10º aniversário da Petrobras. O equipamento de oito metros de altura simboliza a campanha "O Petróleo é Nosso", que impulsionou o desenvolvimento energético e industrial do Brasil.
Índia Obirici
A escultura da Índia Obirici está colocada ao lado do viaduto de mesmo nome, que faz a passagem da Avenida Assis Brasil sobre a Avenida Plínio Brasil Milano, no bairro Passo D'Areia. O monumento de bronze foi esculpido por Nelson Boeira Fäedriche e Mário Arjonas e instalado em 1975 ao lado do viaduto.
Segundo a lenda, a história de amor de Obirici deu origem ao córrego Ibicuiretã, o Passo D'Areia. Ela e outra indígena amavam um guerreiro. Em dúvida sobre a escolha, o homem promoveu jogos públicos entre as duas, como arco e flechas.
Obirici perdeu a competição e a chance de casar com o seu amado. Em uma versão, inconsolável, sua face e seu corpo foram se desfazendo em lágrimas, que formaram as águas de arroio sobre a areia.
As Ninfas da Fonte
Denominada Ninfas da Fonte e popularmente conhecida como As Moças da Fonte, esta escultura é uma das mais inacessíveis da cidade. Isso porque a estátua está instalada em um chafariz que ficou atrás dos trilhos do Trensurb e do Muro da Mauá, na Praça Edgar Schneider.
A obra é de autoria do alemão radicado em Porto Alegre Alfred Hubert Adloff, considerado um dos mais importantes artistas da cidade no início do século passado.