Dois anos atrás, quando o prédio do antigo Cine Teatro Presidente, na Avenida Benjamin Constant, em Porto Alegre, foi cercado por tapumes, uma pichação em tom de desabafo chamou a atenção dos investidores do empreendimento prestes a ser erguido no local.
— Alguém escreveu no tapume: "Deixem o patrimônio histórico em paz!" Vimos que tinha gente que pensava que o prédio ia abaixo — recorda Enio Pricladnitzki, sócio-diretor da Wikihaus Inc.
Ao contrário de outras edificações antigas da Capital, o edifício histórico não corria risco de ser demolido. É considerado patrimônio histórico pela prefeitura. O lugar padecia em situação degradante até ser assumido pela incorporadora, que se apressou em esclarecer o mal-entendido, afixando uma placa na fachada onde esclarecia que, na verdade, ela passaria por uma restauração — um novo empreendimento seria construído dentro do antigo imóvel. Os tapumes pichados foram substituídos por outros, imaculados até o dia em que a reportagem visitou o local.
Literalmente caindo aos pedaços, a fachada colorida de um dos mais emblemáticos cinemas de rua de Porto Alegre passou por processo de recuperação minucioso. Sem condições de aproveitar o material original, os empreendedores fotografaram a estrutura e enviaram a imagem digitalizada para uma empresa de São Paulo que ficou responsável por reproduzir 600 mil pastilhas idênticas às que costumavam adornar o exterior do local, fechado na década de 1990. As novas foram agrupadas em pequenas placas e enviadas à Capital com as indicações para a sua instalação.
O que se seguiu foi uma espécie de batalha naval ao contrário: durante dois meses, operários montaram os quebra-cabeças baseados em coordenadas. A principal diferença entre o processo que se deu no edifício da década de 1950 e o jogo famoso foi o resultado, que, em vez de submergir, trouxe à tona um pedaço da história de Porto Alegre fadado a perder-se no tempo.
— Consegue ver o prédio que está atrás? Não, né? A gente fez para não ver mesmo — brinca o engenheiro Alexandre Almeida.
Atrás da fachada repaginada do Cine Teatro Presidente encontra-se em fase final o empreendimento de mesmo nome que deve ser concluído até setembro. O prédio, com 58 apartamentos e um total de 13 pavimentos, será um coliving, um tipo de moradia com dimensões modestas — cada unidade tem em torno de 35 metros quadrados — e foco nas áreas compartilhadas.
Para realizar a obra no imóvel inventariado, a Wikihaus teve de atender algumas exigências específicas da prefeitura, entre elas preservar sua proporção e recuar em 10 metros a nova construção, de modo que não atrapalhasse a vista do edifício protegido. É preciso atravessar a rua para enxergar o prédio novo, cuja construção transformou o empreendimento Cine Teatro Presidente em objeto de estudos acadêmicos.
Um prédio dentro do outro
Sem ter como acessar a área com caminhões e máquinas de grande porte, como ocorreria em uma obra feita em terreno vazio — o Presidente ocupa 100% da área —, o processo de demolição teve de ser adaptado. Levou cerca de um ano, entre espaços que tiveram de ser quebrados à mão e outros que contaram com o auxílio de guindaste (como o telhado, que exigiu o içamento de uma máquina pela Avenida Benjamin Constant). Durante três meses, a obra foi paralisada para a retirada de vigas que impediam o prédio de subir.
— Desde que esse lugar foi comprado, o potencial de intervenção urbana foi o que nos motivou. A gente só não sabia o trabalho que ia dar — sorri Almeida.
Para facilitar o acesso ao local e diminuir os transtornos na avenida, os empreendedores alugaram um terreno localizado atrás do prédio antigo. A obra iniciada há dois anos consistiu em, basicamente, implantar o novo dentro do antigo. O pé direito imponente do cine teatro permitiu que a área fosse dividida em cinco pavimentos, três deles destinados a vagas de estacionamento — o térreo terá duas lojas, e o quinto andar algumas unidades dos apartamentos. Quem deixar o carro no segundo pavimento deve deparar com a linha em diagonal da plateia de onde se viu, entre outros famosos, o último show de Cazuza na Capital.
Na parte interior do empreendimento serão poucos os vestígios do cinema abandonado. Duas cadeiras e um projetor passaram por restauração e devem ficar expostos no hall de entrada. Um par de ganchos cuja função é um mistério junto à área que agora leva uma piscina também foram mantidos.
Projeto teve colaboração da comunidade
O Cine Teatro Presidente é o primeiro projeto da Wikihaus com conceito retrofit — como é chamada a modernização de prédios antigos. Para concebê-lo, a incorporadora realizou dois workshops: um deles voltado ao público-alvo do empreendimento — jovens entre 20 e 30 anos — e outro com influenciadores. Todos conheceram um projeto prévio e deram opiniões sobre ele.
Os palpites foram desde a infraestrutura do coliving — que deverá contar com coworking, churrasqueira, lavanderia, academia, horta e bicicletas compartilhadas, entre outras áreas comuns — até a relação do prédio com o entorno. A expectativa era de que o lugar abandonado, que teve fios elétricos e outros objetos saqueados, e onde dormiam pessoas em situação de rua, voltasse a trazer movimento e, consequentemente, segurança para a região.
Conforme os empreendedores, várias das sugestões foram levadas em consideração. Nem todas, no entanto, mostraram-se viáveis da forma como alguns dos entrevistados sonhavam.
— As pessoas queriam uma área verde. Era impraticável, porque o prédio ocupa 100% do terreno e tínhamos de manter a estrutura. No fim, usamos a parte do recuo e fizemos um terraço gramado — lembra Enio Prikladnitzki.