*Por Sergius Gonzaga
Professor de literaturada UFRGS. Autor de curso de literatura brasileira (2009)
Quando LFV começou a produzir, consolidava-se no país um processo modernizador sem precedentes. A antiga sociedade agrária agonizava, e milhões de brasileiros marchavam para as cidades. No plano dos valores, assistia-se à derrocada final das normas de existência da sociedade patriarcal, substituídas por novos comportamentos e novas expectativas. O individualismo, a busca da felicidade pessoal, o culto ao dinheiro e à fruição dos bens de consumo passaram a constituir os pilares éticos do sistema triunfante.
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Nenhum outro escritor foi capaz de observar com tanta argúcia e leveza o que estava acontecendo. Tratou de filtrar na superfície da nova vida privada que se edificava a sua essência oculta, transformando-se no principal retratista dos costumes de seu tempo. Escreveu uma quantidade assombrosa de páginas: comentários, monólogos, histórias curtas. Em todas essas espécies de crônica sobressaem-se a clareza, a gag verbal, o poder de encantamento da prosa e um assunto chave, explícito ou implícito, mas sempre dominante: a comédia brasileira da modernidade. Mostrou-a através da infinita mudança dos projetos pessoais que transitam da frugalidade ao consumismo; da solidariedade familiar ao hedonismo; dos afetos comedidos à exposição gritante dos instintos; do espírito religioso à adoração fetichista das mercadorias; das graves responsabilidades à inconsequência geral.
Há algo do vaudeville nesses textos: as cenas curtas, o humor rápido, as alusões políticas e sexuais, certa tendência à caricatura e ao exagero, e o desprezo por qualquer forma de ênfase ou retórica. Por isso os inesgotáveis casos amorosos, a ronda dos adultérios, as traições subjetivas, as mentiras que os homens contam às mulheres (e vice-versa), as orgias, o "sexo na cabeça", sem que haja mais aquela angustiante noção de pecado, desencadeadora de culpas ancestrais, pois agora tudo é permitido, inclusive o amor com cabritos e anões besuntados. Por isso, a ênfase em famílias pequeno-burguesas, abruptamente subvertidas pelo liberalismo anárquico, arrastando os pais à perplexidade frente a filhos repletos de tatuagens e piercings, genros abusados, nunca propensos a encontrar um emprego convencional – nem qualquer emprego. Por isso, a galeria incomensurável de acontecimentos, triviais ou luminosos, de figuras humanas, comuns ou excêntricas, de diálogos risíveis nos bares, nas mesas de pôquer, nos motéis, na praia, onde quer que se encontre o hominus brasiliensis em busca de seu destino ou parceiro, ou simplesmente esforçando-se para levar a vida.
Engana-se, contudo, quem julgar que o escritor apenas estabeleceu uma fórmula engraçada e relativamente frívola de esquadrinhar os códigos existenciais do presente. Aparecem em suas melhores crônicas – além do admirável estilo conciso, carregado de imprevistas tiradas verbais – dois elementos de universalização e transcendência.
O primeiro decorre da expansão criativa a que submeteu o humor brasileiro. Usou o arsenal comum à área, da caricatura à alusão maliciosa, do trocadilho à anedota, da paródia ao chiste, mas alcançou um patamar quase delirante de nonsense em certos textos, pondo em relevo situações desorbitadas e insólitas, criaturas possuídas por obsessões inimagináveis, cujos atos e pensamentos rompem com a normalidade, instaurando um reino arbitrário e surreal, onde tudo parece estar virado de cabeça para baixo.
O segundo elemento – talvez o mais permanente – é o registro melancólico (e não nostálgico) do caráter líquido dos amores, do desencanto dos afetos que se encerram, da natureza fluida de todas as relações humanas, da passagem inexorável do tempo, da banalidade da existência, da aspereza de um mundo sem deuses e sem paraísos terreais ou celestiais. Ao contrário da melancolia aberta da obra de Tchekhov, a de LFV reveste-se de uma forma velada, sutil, quase imperceptível, mas que se infiltra nas comédias do cronista, como uma espécie de corrosão incontornável, bela e de candente pungência.