Leon Tolstoi está fazendo uma faxina na casa. Aproxima-se do divã e já não pode lembrar se o havia limpado ou não. Na dúvida, faz o serviço de novo. É 1897 e ele escreve algumas linhas sobre isso em seu diário, refletindo sobre a automatização do comportamento humano. "Se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido."
Em 1917, um sujeito também russo chamado Chklovski escreve um ensaio em que argumenta que essa cegueira cotidiana tem na arte o seu contraponto. A arte, em resumo, nos abre os olhos. Quem nunca percebeu alguma coisa sobre sua própria vida no escuro de uma sala de cinema? Os amigos podem lhe dar "n" conselhos sobre seu casamento, mas às vezes é uma cena que se passa em uma propriedade rural da Toscana, entre duas pessoas que você nunca teria encontrado na vida, o que lhe faz perceber algo fundamental sobre si mesmo. "Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte", escreve Chklovski.
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A tal sensação de vida devolvida, acredito eu, vem de um equilíbrio complexo entre o novo (que provoca estranhamento) e o familiar (que provoca reconhecimento). Fiquei pensando nisso ao assistir, semana passada, aos oito episódios de Stranger things, a série original da Netflix. Talvez o que mais se fale sobre Stranger things é o quanto a série está apinhada de referências aos anos oitenta, o que faz com que ela tenha uma vantagem na largada para toda uma geração: a empatia é imediata assim que você vê aquelas bicicletinhas, as roupas e o corte de cabelo de Barb, ou uma mera fita cassete.
De certa forma, a nostalgia – da qual todos nós estamos carregados – vem sempre acompanhada de um desconforto em relação ao presente. Hawkins, a cidadezinha-feita-para-a-ficção de Stranger things, é a concretização da simplicidade. Saem os celulares, entram os limitados walkie-talkies. Sai Pokémon Go, entra Dungeons&dragons (imaginação, algumas miniaturas de monstros, dados). Cimente isso com sentimentos nobres das personagens, tais como lealdade e obstinação, e se torna bem difícil essa história desagradar alguém. Monstros à parte, o universo tem algo de muito acolhedor, e mesmo a trama do projeto ultrassecreto do governo transpira uma certa ingenuidade. É como se nos entregassem a comida da mamãe em um prato de duralex (1986), não um burguer com cogumelos flambados no uísque acompanhado por chips de batata doce (2016).
O que quero dizer com isso é que o estranhamento, necessário para toda a obra de arte, como já dizia Chklovski há cem anos, pode vir justamente daí: do embate entre nosso mundo contemporâneo e aquele mundo de antes. Digamos que é um estranhamento um pouco domesticado, uma vez que ele não nos faz olhar as coisas comuns de outro ângulo, mas apenas lembra que elas existiram e que, por todo esse tempo, a gente vinha sentindo saudade delas.
Portanto nenhuma chave sobre a sua vida vai estar ali, o que de qualquer maneira nunca foi o objetivo de obras que jogam com o sobrenatural; você provavelmente vai achar o desfecho insatisfatório, porque tudo que cria mistério demais tende a nos frustrar, como se a graça toda estivesse no meio, nunca no fim; mas quando alguém falar em Atari, você vai sorrir. Agora parece que já deu tempo do banal de sua infância virar alguma coisa cinematograficamente interessante.