*Por Ana Carolina da Costa e Fonseca
Professora de Filosofia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Por muitos anos, as mulheres foram tomadas como objeto. Suas vozes não eram ouvidas e seus corpos estavam à disposição dos homens, durante o dia para cuidar de suas casas, à noite para lhes dar prazer. A luta do feminismo transformou objetos em sujeitos. Como resultado, o direito mudou em muitos países. Mais do que mudar o direito, é preciso mudar a sensibilidade das pessoas em relação a diversas formas de violência. O livro Missoula, de Jon Krakauer (Companhia das Letras, 2016), é, neste sentido, exemplar, e deveria ser lido por professores, para que entendam o que ocorre em instituições de ensino, e por estudantes, para que ajam de modo diferente sendo eles vítimas, agressores ou amigos de um ou de outro. Apenas o debate sobre violência sexual em instituições de ensino possibilitará que diminuam os casos de agressão.
Antes de seguir, faço uma ressalva ao leitor. Nem todas as vítimas de violência sexual são mulheres, nem todos os agressores são homens. O autor do livro resenhado, contudo, tratou de casos com esta conformação, que correspondem, de fato, à maioria dos casos de violência sexual. Faço o mesmo nesta resenha.
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Jon Krakauer denuncia e analisa a omissão de autoridades na cidade universitária de Missoula, em Montana, nos Estados Unidos, onde muitos se esforçaram para proteger agressores e, com isso, cometeram outra agressão contra as vítimas. Os agressores nos crimes descritos por Krakauer são jogadores do time de futebol americano da Universidade de Montana. São jovens, talentosos e admirados pelos torcedores. Eles não correspondem ao estereótipo de um estuprador. As vítimas são jovens estudantes, que sofreram primeiramente pela violência sexual e, num segundo momento, pela violência do sistema que lhes nega o direito de denunciar e, quando conseguem denunciar, de ver seus agressores punidos.
O estupro é um crime que ocorre longe dos olhos de testemunhas. A imagem que se tem do estuprador é a de um homem desconhecido, forte, repulsivo, que atacará suas vítimas munido de uma faca, as levará para o mato ou para um terreno baldio e as violentará. Segundo o autor, apenas um quinto das mulheres vítimas de estupro são atacadas por um desconhecido. As demais, cerca de 80%, são agredidas por pessoas que já conheciam. Segundo tais dados, as mulheres estão mais seguras na rua do que na casa de alguém, se quiserem se proteger contra a violência sexual.
Os estupros praticados por conhecidos não envolvem, necessariamente, uma agressão muito violenta do ponto de vista físico. Mulheres, seguidamente, relatam que paralisaram frente à agressão. Elas, contudo, afirmam invariavelmente que não consentiram com a relação sexual. A recusa foi ignorada ou desqualificada. É significativo que nossa sociedade repita à exaustão que as mulheres não sabem o que querem, que dizem "não", quando "na verdade" queriam dizer "sim". Os estupradores que conhecem suas vítimas não ouvem sua recusa.
A violência sexual é valorada moralmente como vergonhosa para a vítima e como uma fatalidade para o agressor. Como consequência, a mulher se sente envergonhada por ter sido violentada. O homem, ao contrário, será protegido. O agressor se torna vítima, ou daquela que o provocou e depois mudou de ideia, ou de seus instintos. De qualquer modo, como foi dito, tanto por homens quanto por mulheres, no livro de Krakauer, "não podemos estragar a vida do pobre rapaz com uma condenação por estupro".
O silencioso sofrimento das vítimas é ignorado pela sociedade que não suporta a punição explícita de agressores com um certo perfil. A sociedade está disposta a punir os agressores que parecem repulsivos, mas não parece disposta a punir os que se apresentam como bons cidadãos. A resposta das autoridades (universitárias, policiais, do Ministério Público, do Poder Judiciário) e dos próprios membros do júri às denúncias feitas desincentiva mulheres a denunciar.
O livro de Krakauer provoca mulheres para que denunciem e as autoridades para que tratem mulheres agredidas com respeito, para que acreditem no que dizem até que tenham provas para duvidar e para que façam seu trabalho bem feito para punir os agressores. Ainda segundo dados de Krakauer, 90% dos estupros praticados por agressor que conhece a vítima são cometidos por estupradores reincidentes, ou seja, a omissão das autoridades está contribuindo para que mulheres sejam vítimas de violência sexual.
Precisamos reafirmar: se uma mulher disser "não", significa que ela não quer se relacionar sexualmente com você! Jon Krakauer tira debaixo do tapete a sujeira que muitos gostariam que ficasse lá! E nos provoca... Homens, respeitem a recusa de uma mulher! Mulheres, denunciem as violências de que vocês são vítimas! Autoridades, presumam que as mulheres estão dizendo a verdade e trabalhem para punir seus agressores, com isso, vocês deixarão de ser cúmplices de estupros que deixarão de ser cometidos! Professores, provoquem a discussão sobre violências sexual nas instituições de ensino onde vocês lecionam!
Missoula
Famoso pelo best-seller Na Natureza Selvagem (1996), Jon Krakauer investiga, em Missoula, a cultura do estupro em uma cidade universitária do norte dos EUA. Tradução de Sara Grünhagen. Cia. das Letras, 472 páginas, R$ 59,90 impresso e R$ 39,90 em e-book.