Pouco mais de quatro décadas distanciam a criação de Mickey, o personagem consagrado de Walt Disney, do ano em que nasceu o Mickey de Porto Alegre, morador de Alvorada e famoso por ganhar a vida tirando fotos a R$ 0,50 no centro da Capital. Por trás da fantasia preta e branca – uma versão singela do desenho norte-americano – há o sorriso bondoso de quem encontrou nas ruas o seu sustento.
Mais velho de três irmãos, nascido em Santa Catarina em 1º de agosto de 1974 – 46 anos depois que Mickey Mouse foi criado – Clóvis Adriano Pires trabalha há oito anos usando fantasias e cobrando por fotos tiradas por quem passa pelo Largo Glênio Peres. Diariamente, exceto às segundas-feiras, ele pega um ônibus no bairro Umbu, onde mora com o irmão mais novo, a cunhada e uma sobrinha, e segue para Porto Alegre.
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No início, ele se vestia de Pica-Pau, o primeiro traje que conseguiu adquirir após muito economizar. Depois, veio a roupa de um dos Bananas de Pijamas e do Homem-Aranha. Por último, a que o tornou famoso: do Mickey.
– Mickey é a que mais gosto. Mas quero agora uma do Pato Donald – diz, enquanto sorri, sem a máscara do rato da Disney em uma pausa feita entre as centenas de fotos que tirou neste sábado.
A notoriedade recente surgiu a partir de uma campanha estimulada por uma publicação feita na página do Facebook Porto Alegre 24 Horas, onde foi relatado que pessoas passavam por ele dando risada, fazendo chacota da fantasia. Prontamente, eventos foram criados na rede social mobilizando as pessoas para que fizessem doações e entregassem a Clóvis na tarde deste sábado, no Largo Glênio Peres.
Durante os anos de trabalho, além de ser motivo de piada, Clóvis já foi esfaqueado na mão por uma mulher que queria roubar seu dinheiro e também teve o rabo da fantasia de Mickey cortado.
– Eu me sensibilizei com a história dele quando vi a postagem. Então fomos atrás da família, pra combinar de ele estar aqui hoje (sábado) e começamos a divulgar pra que todo mundo pudesse ajudar de alguma forma – conta um dos organizadores do evento, o programador Gabriel Stein, 26 anos.
Além de dinheiro, o Mickey de Porto Alegre ganhou alimentos e roupas. E, claro, tirou centenas de fotos durante todo o dia. Uma delas, com o casal Rafaela Marcotti, 26 anos, e Jassanan Rodrigues, 42 anos.
– Quando eu vi a publicação no Facebook eu fiquei muito emocionada, porque o pessoal ficava rindo dele. Daí falei pro meu marido e resolvemos vir. Compramos frutas e verduras e também aproveitamos para tirar foto com ele. É muito bom ver uma ação assim, dá uma sensação de união, de cuidado mútuo – afirma Rafaela.
Com dificuldade para falar, quem conta a história de vida permeada por desafios é a irmã de Clóvis, a camareira Ariadne Pires, 31 anos. Ela recorda o acidente que quase custou a vida dele a partir do que foi relatado pela mãe, Elisa, já falecida. Clóvis nasceu em Santa Catarina e morava lá com os pais. Quando tinha entre três e quatro anos de idade, subiu em uma janela do apartamento localizado no quinto andar, onde a família residia, e caiu de lá.
– Na queda, o crânio foi esfacelado. Ele ficou uns dois anos na UTI e foi colocada platina em todo o lado direito do corpo, no rosto, na perna e no braço. Isso também causou problemas mentais nele. Só sobreviveu por milagre – relata a irmã.
A cidade onde nasceu e quase perdeu a vida não é recordada pela irmã. Lembrança que se foi junto da mãe, falecida há oito anos. Pouco depois do acidente, a família veio morar em Alvorada, onde nasceu Ariadne e o irmão mais novo, Andriel, 23 anos.
A morte da mãe marcou o começo da "carreira" de Clóvis. De início, ele vagava pela área central de Porto Alegre pedindo dinheiro. Queria trabalhar, não achava emprego e esta havia sido a forma encontrada por ele para conseguir alguns trocados e não depender totalmente dos irmãos.
– Eu fiquei sabendo, na época, por pessoas que vieram me contar. Ficamos apavorados, porque a gente é humilde mas nunca precisou fazer essas coisas. Trancamos ele em casa e dissemos que não podia pedir dinheiro. Daí foi quando ele comprou a roupa do Pica-Pau e começou a tirar as fotos. É uma coisa que ele gosta muito – conta Ariadne.
Recebendo trocados generosos pelas fotos tiradas neste sábado e também acomodando as sacolas com roupas e alimentos, deixadas por quem se solidarizou com sua história, Clóvis sintetizou o gesto de carinho em uma frase simples e pura:
– É muito bom.
Conhecido e querido por todos, o Mickey de Porto Alegre tem como sonho, além de uma roupa do Pato Donald, ter o próprio quarto. Hoje ele dorme em um sofá na casa do irmão.
– Só temos que agradecer as pessoas que fizeram esse presente pra ele. Meu irmão é muito bom, sempre me ajudou cuidando dos meus filhos quando eu precisava sair pra trabalhar e agora encontrou um trabalho que gosta. É bom ver que existem pessoas boas no mundo – afirma Ariadne.