*Cineasta
Um dos grandes nomes do cinema mundial, autor de Nós que nos Amávamos Tanto, O Baile e A Viagem do Capitão Tornado, Ettore Scola (1931 - 2016) esteve em Porto Alegre em 1996 para participar de um seminário sobre cinema promovido pela Secretaria Municipal da Cultura em parceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre. A fala de Scola e o debate que se seguiu foram registrados no livro Cinema Falado, editado por Fernando Rozano e publicado em 2001 reunindo as conferências de cinco anos do seminário, entre 1996 e 2000. É desse livro, publicado pela Unidade Editorial, que foi retirado o trecho abaixo.
Como foi a passagem de Ettore Scola em Porto Alegre há duas décadas
Cinco filmes para conhecer Ettore Scola
De vez em quando surgem tempos revolucionários e este é certamente um tempo de revolução telemática, e portanto é justo interrogar-se, é justo analisar sobre como se desenvolverá, que espaço terá o cinema nas novas grandes possibilidades de comunicação. O cinema foi definido - e no entanto é tão jovem, tem apenas cem anos - a maior forma de literatura do século 20. Italo Calvino escreveu que o maior escritor italiano - escritor e não diretor de cinema - é Vittorio De Sica. Escreveu que o cinema representou a Itália, a condição italiana, melhor que a sua literatura, a música e a pintura. O Cinema deve essa sua capacidade exatamente à possibilidade que tem de estudar o homem, à possibilidade que tem de suscitar os sonhos. Os nossos sonhos, os sonhos de cada um de nós, são a representação do nosso inconsciente. O cinema, ao invés, é a representação do inconsciente coletivo e, portanto, faz parte de uma zona espiritual. O cinema faz parte de uma religião. Eu comecei a ir ao cinema quando tinha cinco anos porque tinha uma mãe louca por cinema, que tinha necessidade de ir ao cinema todos os dias. E nós íamos ao cinema exatamente como a uma função religiosa. As cadeiras eram incômodas, de madeira, o som não era muito claro. Cada vez que levantávamos, as cadeiras batiam, faziam barulho. Não podíamos nos concentrar, mas mesmo assim, a função, a cerimônia coletiva era muito forte. Sentíamos que se saía do mundo pessoal para ocupar-se com qualquer coisa maior, qualquer coisa que até podia fazer parte de nós, logo, muito semelhante à religião. A religião católica promete futuros paraísos no outro mundo. O cinema, ao invés, é uma religião que promete como pode ser aqui, hoje, neste mundo. É uma função diferente, é um prêmio agora, não depois da morte. É um prêmio nas duas horas de escuridão e silêncio. Duas horas nas quais, naquela escuridão e naquele silêncio, havia realmente anjos e demônios que disputavam as nossas almas. Nós participávamos ativamente dessa luta entre anjos e demônios, no nosso espírito (...). Depois veio outra forma de espetáculo, que é a televisão. A televisão é certamente uma grande conquista do homem, alcançou a contemporaneidade, alcançou a totalidade da audiência. Nunca havia acontecido na história do homem que vinte, quarenta milhões de pessoas pudessem assistir ao mesmo evento, no mesmo momento (...). É verdadeiramente grande, uma enorme inovação. Porém, no que diz respeito ao homem, não é uma descoberta científica que o tenha promovido. Ao contrário, adormeceu um pouco a sua atividade, fez com que se tornasse passivo. Aqueles silêncios e aquela escuridão foram substituídos por barulhos e sons que devem ser sempre mais fortes, sempre mais excitantes, para mantê-lo acordado. Porque de outra forma o espectador, em casa, tende a se resignar ao hábito, ao bocejo, à passividade. De fato, perde realidade. Nós vimos guerras muito recentes, a guerra do Golfo ou a Guerra da Bósnia, todas na televisão, todas muito próximas e, não obstante, foram as guerras mais distantes que vivemos: foram as guerras em que menos participamos, as guerras que menos nos tocaram, foram guerras quase virtuais, luzes que passavam, mísseis, máquinas, nuvens. Mas os escombros que resultam não são virtuais, são escombros reais. E não só escombros de cidades mas também do homem. Justamente porque estas grandes, enormes possibilidades não encontraram ainda - e digo ainda, mas certamente deverão encontrá-lo - este ponto de contato, de comunhão com o homem, com o homem como centro da humanidade, como centralidade do espírito. Certamente, em dois mil anos, as ciências nos ajudaram muitíssimo a viver melhor, a conhecer as doenças, a melhorar o nível de vida, a melhorar o ambiente, a prevenir, a prever. Hoje certamente se vive melhor do que na Idade Média, graças à ciência, mas não creio que o homem moderno tenha sido criado pela ciência, e sim pelo humanismo. Creio que tenha sido criado, de Dante Alighieri até nossos dias, exatamente pelo seu desejo de conhecimento. Quando Dante Alighieri faz Ulisses dizer aos seus companheiros Fatti no foste a viver come brutti ma per seguire virtute i conoscenza ("Vocês não foram feitos para viver como brutos, mas para buscar a virtude e o conhecimento"), queria dizer que o único caminho do homem para o progresso é o do saber, do conhecimento, é o de ser impulsionado sempre por novas curiosidades a respeito de si mesmo. Penso que os novos meios ainda não encararam este assunto, esta pergunta (...). Depois, além da televisão, que já está quase obsoleta, que está quase ultrapassada, são muitas as ocasiões telemáticas, estradas, autoestradas, a comunicação através de fios, de cabos, nos mares, sob as calçadas, ondas cerebrais, sites interativos, isto é, estímulos infinitos, possibilidades infinitas, riquezas infinitas ainda por estudar e por projetar. Deve, porém, mudar também o modo de ser espectador, o modo de ser autor, porque senão seremos esmagados. É claro que estes novos poderes constituem um poder industrial capitalístico enorme, talvez um poder que nenhum tipo de ditadura jamais tenha possuído nessa proporção. É um superpoder que (...) será sempre mais fechado nas mãos de poucos, de pouquíssimos, talvez, no fim, nas mesmas mãos de um só, um único hortelão que decidirá sobre o que se deverá plantar na horta, e só crescerá naquela horta aquilo que o hortelão decidir, o hortelão maior. E tamanho nunca foi garantia de nenhuma qualidade e o homem estará sempre menos presente. É necessário porém saber desses perigos, conhecê-los, combatê-los, porque estas possibilidades estão abertas aos novos meios, às novas gerações.