A democracia de Atenas passou um século inteiro (de 508 a 404 a.C.) sob ataque. Rica e senhora de um império, Atenas conseguiu financiar seu regime de liberdade e graciosidade, e viveu seu apogeu com arte, ciência e política, na era de Sófocles, Anaxágoras e Péricles. A guerra do Peloponeso (431 - 404 a.C.) pôs fim a este movimento, e deixou abertos vários problemas da democracia, atualizados em cada era e cenário, inclusive os nossos.
O primeiro problema: democracia é regime de autoria e responsabilidade, portanto, exige alto grau de educação e compromisso. Se o sistema educacional falhar, o regime vai tropeçar, e todos pagarão caro por isso; trata-se de um princípio de sustentabilidade cultural que deveria conectar as elites com as demandas populares, sobretudo neste quesito. A utopia de Platão, proposta como antídoto ao problema da educação do povo e que previa um dirigente sábio regendo a maioria alienada, é o oposto da democracia, e não pode funcionar em uma cultura com voto majoritário e participação política. Ou todos sabem decidir e participam da decisão, ou prospera o caminho da violência e do erro. No Brasil, muitos acham que há um complô para manter o povo com baixa educação e facilitar a vida do andar de cima; se assim for, estes oligarcas deveriam saber que o mal reverte ao seu autor, e todos perdemos com a falta de ótima educação pública.
Questão seguinte: qual a educação visada, necessária para a democracia? Talvez aquela ensinada por Aristóteles: capacidade de discernir, ponderar e realizar as melhores escolhas, que levem ao bem comum e à felicidade. Misturar religião, futebol e política é sintoma claro desta falta de discernimento, grave ameaça à democracia; falhou o sistema educacional, que inclui a imprensa, os museus e toda a cena cultural. Mas há outras misturas mantidas por gente cheia de títulos e milhagens, e são estas as piores, maquinadas por rapineiros ou assumidas por cidadãos opacos. Afinal, é tão difícil perceber onde há maior e melhor bem comum? Se for, precisamos conversar.
Outra questão democrática, aqui recorrente: dialogar, debater, examinar, opinar: a participação ajuda ou prejudica a ação? Sofremos do horrível preconceito, talvez herdado das várias ditaduras, de que o debate atrapalha. Resposta ateniense, que Tucídides pôs na boca de Péricles, na Oração fúnebre: "decidimos por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estudo exato: não acreditamos que o discurso entrave a ação; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão. Por isto nos distinguimos, porque sabemos empreender as coisas juntando a audácia à reflexão, mais que qualquer outro povo." Pronunciado há 2.445 anos, esse discurso ainda soa estranho para ouvidos afeitos à truculência, arautos da inconsistência técnica, cultural e política.
Por fim, a democracia é a conversão da luta com armas (guerra civil) por disputa com argumentos. São vitais três condições: liberdade de expressão, clareza e sinceridade. Mesmo a lei, bom fundamento, se não garantir o bem comum, deverá ser revisada. Obscurantismo, ocultação, falta de transparência e hipocrisia são fontes de males maiores, todavia saneáveis com bom debate na esfera pública e um grau maior de educação, polidez e bons propósitos, virtudes muito raras em nosso teatro social e político. Mesmo a ineficiência e até mesmo a incompetência podem ser superados com estas armas, diálogo e um bom plano. A democracia dá esperanças, mas ainda precisamos aprender a dialogar e a cooperar, equacionando diferenças, antes que cheguemos ao ponto de transformar patrimônios preciosos em loteamentos, fechar escolas e surrar acadêmicos, aplaudir a violência como se ela nos salvasse do mal que ela mesma produz. Mais democracia, Porto Alegre, SP, Brasil.
*Francisco Marshall é historiador, arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente no PrOA.
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