Que distância separa as execuções cometidas por vingança, como a chacina da grande São Paulo, das arbitrariedades cotidianas nas abordagens policiais em todo o país?
Um vídeo de 2 minutos e 47 segundos que circula pelas redes sociais dá uma dimensão daquilo que não aparece nos registros oficiais da polícia militar gaúcha. As imagens, gravadas durante ocorrência em Porto Alegre, mostram um jovem baleado, agonizando no chão, enquanto brigadianos desdenham e desejam sua morte, com frases como:
"Aiai, não tá doendo em mim, filho da puta."
"Não morreu ainda?"
"Vai, vai embora".
Em uma das cenas, o rapaz rendido diz que "só queria um pouquinho d´água." Os policiais o incentivam a tomar o líquido de uma poça d'água lodosa junto ao cordão da calçada. Ele toma.
"Cara, eu tô baleado, vou morrer."
"Não tem problema, é menos um para dar tiro nos polícia."
O vídeo foi gravado por policiais em 13 de novembro de 2013, na Avenida Sarandi, e recentemente ressurgiu em postagem no Facebook, provocando discussões. O jovem que aparece nas imagens é Jonas Martins Gonçalves, 30 anos, conhecido pelo apelido de Ladaia. Ele cumpre pena de 10 anos e oito meses por tentativa de latrocínio no Presídio Central. Tem antecedentes por roubo de carros e tráfico. E naquele dia teria tentado roubar a tiros o veículo de um policial à paisana, que reagiu atirando e o baleou.
Seria mais um caso rotineiro de prisão se as imagens dos bastidores não tivessem sido gravadas pelos policiais e expostas na internet. No tribunal inflamado das redes sociais, houve gente que vibrou com as humilhações aplicadas pelos policiais a Jonas, que agonizava no chão. Mas a própria corregedoria da BM admite excessos na ação.
- Há ali fortes indícios de ação irregular daquela guarnição - avalia o corregedor-geral da BM gaúcha, Jefferson Jacques, depois de assistir ao vídeo a pedido da reportagem do PrOA.
Ao tomar conhecimento do vídeo, o juiz de direito da 2ª Vara Criminal Léo Pietrowski determinou em 7 de agosto a apuração do caso. De acordo com a corregedoria da BM, foi aberta na semana passada uma investigação pelo comando do 20º Batalhão, responsável pela ocorrência, com prazo de 40 dias. O policial Edson Poli, que segundo o processo foi vítima da tentativa de assalto por Jonas e o baleou depois de ter o carro alvejado por ele com seis tiros, disse ao PrOA que não prestou atenção em quem estava gravando o vídeo, porque "estava mais preocupado com meu carro e com a minha segurança", mas entende que cada um tem "liberdade de filmar".
- As pessoas são livres de opiniões. Não tem ninguém chutando ou cuspindo. Vou te dizer: eu estava com uma pistola com 13 tiros, se eu quisesse matar eu teria matado.
E se espantou com a repercussão do vídeo.
- Já vi vídeos muito mais fortes - minimizou.
A família de Jonas, que mora em Viamão, assistiu a trechos do vídeo pela televisão, num programa policialesco. Ficou atônita.
- Eu sei que ele errou e que escolheu essa vida. Mas ele não merecia ser humilhado daquela maneira, até tomar água do esgoto. Isso matou a gente - disse a irmã de Jonas, a doméstica desempregada Vanessa Martins Gonçalves, 33 anos.
A defensora pública Alessandra Quines Cruz, coordenadora geral do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, diz que o órgão estuda entrar com um pedido de indenização a Jonas.
- Não sei o que é pior, um cidadão cometendo um crime ou um policial, que estudou e deveria proteger a sociedade. Se formos ficar no olho por olho, dente por dente, vamos viver numa sociedade de desdentados e caolhos. O resultado é catastrófico - argumenta.
Desde janeiro de 2014, quando foi criado, o órgão da Defensoria gaúcha já recebeu 172 denúncias de violência policial - 80% dos casos se referiam a agressões cometidas pela Brigada Militar. Especialistas em segurança concordam que os abusos policiais cometidos no cotidiano, e muitas vezes tolerados por uma população descrente no sistema de Justiça, são combustíveis para a barbárie.
- A ideia de que bandido bom é bandido morto é um grande engano. Só dramatiza o problema, porque a sociedade fica refém do ciclo de violência. É um matar e morrer contínuo, e no meio do caminho você pode morrer de bala perdida. A população aplaude agora, depois reclama quando isso atinge alguém próximo - observa Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV-SP.