* Doutor em Educação pela UFRGS e pesquisador da Seção de Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre
Qual a relação entre a divulgação de dados pessoais feita pelo site Tudo sobre Todos (noticiada em Zero Hora do dia 28 de julho) e a divulgação da relação nominal dos salários dos servidores da Câmara Municipal de Porto Alegre (também em ZH, 22 de junho)? São expressão daquilo que Zygmunt Bauman denominou de "adiaforização", isto é, apresentada como moralmente neutra ou irrelevante, a exposição de dados pessoais na rede implica em questões morais porque resulta em monitoramento, controle, observação e classificação dos indivíduos.
Imediatamente vieram à tona argumentos jurídicos de que o site viola o direito à privacidade previsto na Constituição. Essa defesa nunca veio à tona quando da divulgação nominal dos salários dos servidores públicos - como se o fato de ser servidor anulasse esse direito. Na Câmara Municipal de Porto Alegre, as vozes contrárias à divulgação nominal (já havia a divulgação por cargo) foram caladas por uma decisão de seu presidente, que não questionou se era moralmente certo divulgar dados pessoais de servidores. É o tipo de atitude que basta para que sites do tipo Tudo sobre Todos possam proliferar.
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Nunca foi uma questão jurídica somente, ela é ética: a publicização de dados pessoais é a face perversa de processos de vigilância que estão ocorrendo na sociedade sem qualquer consideração de caráter moral. Essa exposição produz a possibilidade de cruzamento e a apropriação privada dos dados fornecidos pelos cidadãos ou pelo Estado, seja porque foram disponibilizados em páginas de transparência oficiais, seja porque foram obtidos pelo preenchimento de páginas de redes sociais como Facebook ou qualquer outro site que colete informações. Quer dizer, o fato de dados fornecidos por nós ou por terceiros serem processados, analisados, concatenados com outros dados e depois "vendidos" não é um processo neutro, mas moral, porque os "dados pessoais" substituem a pessoa e afetam suas escolhas e oportunidades.
A lógica de classificação, organização e venda de mercadorias, por um passe de mágica, passa a fazer parte da regulação social. Agora, os indivíduos temem sofrer o controle que seus dados pessoais possam oferecer quando localizados por mecanismos de busca pagos. Mas o pior ainda está por vir: o perigo deste mecanismo, alerta Bauman em sua obra Vigilância Líquida (Zahar, 2013), é a possibilidade que oferece ao poder de produzir exclusão social, a possibilidade de identificar indivíduos ou categorias de indivíduos na condição de sem leis e sem direitos. São sempre formas arrogantes de poder. De um lado, o do mercado, ao dar visibilidade - é claro, cobrando por isso - a cada detalhe íntimo do cidadão: seu salário, sua rede de amigos e parentes, etc; de outro, o do Estado, ao tornar públicos os salários nominais de seus servidores. Fim do confronto entre Mercado e Estado, agora ambos têm um engajamento mútuo no que se refere ao novo espetáculo de "tornar visível o invisível na velocidade de um sinal eletrônico" (Bauman).
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O que a publicização dos salários de servidores públicos anunciava e que a população não se deu conta é de que todos estávamos sendo checados, monitorados, avaliados, apreciados e julgados porque estavam sendo colocadas, quer pelos cidadãos, quer pelo Estado, informações privadas na rede. Vigilância e transparência andam de mãos dadas: o problema é que a transparência é uma moeda cujo valor aumenta para uns e diminui para outros. Perda do direito ao anonimato, perda do direito à privacidade, perda do direito à confidencialidade são questões que não podem ser ignoradas.
Divulgar o nome do servidor público e seu salário produz o mesmo mal que divulgar os dados pessoais de qualquer cidadão. Isso impõe uma categorização social salarial e permite ao marketing e a outros sistemas que tratem os dados dos servidores conforme sua capacidade de consumo. Essa "economia política das informações pessoais" possibilita dados valiosos a serem selecionados: nos classificam, nos organizam e ao mesmo tempo definem nossas possibilidades de ação. É o contrário da democracia: não são "muitos que vigiam poucos", mas "poucos que vigiam muitos".
A internet se transformou em nosso panóptico digital. Quando tudo é visto e registrado, tudo está online, não é possível mais nenhum segredo. Se a divulgação nominal de salários pelos portais de Transparência é a prova da desconfiança do cidadão com seu Estado, a divulgação de dados pessoais capturados por sites diversos revela que não é possível confiar na internet. A confiança é um ato de fé que se tornou obsoleto. "A confiança torna possíveis as relações com os outros sem conhecimento exato deles. A possibilidade de obtenção fácil e rápida de informações é prejudicial à confiança", diz o filósofo coreano Byung-Chul Han em A Sociedade da Transparência (Relógio DAgua, 2014)
Hoje, a confiança cedeu lugar ao controle. Nossa vida digital é reproduzida pela rede. É o que Han chama de "protocolização geral da vida", quer dizer, uma vida sem lacunas. Esse acúmulo de informações que o site Tudo sobre Todos ou os portais de Transparência revelam são exemplos de que os dados expostos na internet não são por si mesmos neutros simplesmente porque lhes falta apontar uma direção, um sentido, uma origem. Afirma Bauman "o gênio da dominação deseja que os dominados façam o trabalho dos dominadores" - e estamos fazendo. Depois do Tudo sobre Todos, espera-se que as pessoas tenham mais cautela com os dados que disponibilizam e que as autoridades pensem duas vezes antes de divulgar dados pessoais de servidores.
"CPF na nota?"