* Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O leitor se enfada ao ler e ouvir, como ladainha, o dito marxista repetido até a náusea na mídia nacional. Falo do chavão: na primeira vez um evento é tragédia, depois comédia. O enunciado não é de Marx. O dito encontra-se nas hegelianas Lições sobre a Filosofia da História, onde se analisa a crise política do Império Romano. Ali, Hegel nota que a entrega do poder a César atenuou a guerra civil em Roma mas levou o império a conflitos bélicos externos. "César abriu um novo teatro; ele criou a cena que deveria tornar-se o centro da história universal". O ditador corrupto sapou o regime republicano pois "o que restava da república era desprovido de força". Imaginando o cesarismo efêmero, Brutus e Cassius usaram punhais. César morto, pensavam, voltaria a república. Presas de espanto ilusório, eles quiseram deter a história, mas "uma revolução política, em geral, é sancionada pela opinião dos homens quando ela se renova". Assim, diz Hegel, "Napoleão caiu duas vezes e os Bourbons foram expulsos duas vezes. A repetição realiza e confirma o que, no início, parecia contingente". Hegel não fala em tragédia ou comédia, mas recorda Shakespeare e sua peça sobre César. E ironiza a tolice conservadora posterior à Revolução Francesa. Marx também bebeu das águas hegelianas, nas Lições sobre a Estética. Ali sim, Hegel fala da tragédia divina e, depois, da sátira.
As frases de Marx, repetidas pelos pedantes de hoje, surgem no 18 Brumário de Luis Bonaparte, livro ignorado pelos preguiçosos universitários ou jornalistas. Como bom acadêmico alemão, o jovem Karl estudou os clássicos. A sua tese de doutorado trata com acuidade e rigor dos mestres éticos ocidentais, Epicuro e Demócrito. Mesmo hoje aquele trabalho serve como fonte (não raro silenciada pelos pesquisadores) no estudo da filosofia antiga e moderna. A tragédia ética é o centro do 18 Brumário.
Marx já aproveitara a ideia na Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito. Cito: "A última fase de uma figura histórica mundial é sua comédia. Os deuses gregos atingidos mortalmente na tragédia, como no Prometeu Acorrentado (Ésquilo), precisariam morrer de novo, comicamente, nos diálogos de Luciano. Por que a história segue tal via? Assim a Humanidade separa-se feliz e alegremente de seu passado". Mesmo quem recusa o pensamento marxista percebe que tais pensamentos fazem refletir, ao contrário da cantilena sobre "tragédia" e "comédia". As palavras são as mesmas, o contexto exige estudo, disciplina, inteligência.
Hegel exprime com figuras fortes outros símiles do poder. Um deles é muito atual no Brasil. Se o governo se apresenta como facção, aí "reside a sua inevitável queda. Como é governo, ele se torna culpado". Um dirigente que age apenas como representante dos seus eleitores comete crime, não apenas por ser facção, mas por ser facção e governo. Ele perde legitimidade ao combater "os outros" que deveria representar (Fenomenologia do Espírito). Quem seguiu a entrevista de Miguel Rosseto e do ministro da Justiça, posterior à manifestação ocorrida em 15 de março, entende o que Hegel expressa. Se o país é dividido entre "nós" e "eles", com certeza a autoridade constituída beira a ruína. Em nosso caso, vivemos um aterrador vazio de poder. A presidente da república é tutelada pelos partidos e segue ditames de seus ministros, sobretudo na área econômica. Sem autoridade, ela não lidera o governo de todos. Ao mesmo tempo os ódios, as calúnias, a intolerância desgastam a cidadania e devem ser atenuados em todos os partidos e movimentos. Caso contrário, agonizam as instituições. E quando tal fato ocorre surge um César qualquer, ditador que a todos submete e cala. Então, os dias pouco têm de alegria e risos. As lágrimas dos exilados (não importa se de esquerda ou direita), dominam a cena histórica.
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