Para muitos dos milhares de espectadores que acompanham a encenação da Via Sacra no Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre, as cenas com humor, ironia e medo são o ponto alto da celebração. Protagonizadas por personagens como Judas, o Diabo, a Morte, Pôncio Pilatos ou o soldado crucificador, passagens que receberam toques mais apimentados na versão do diretor Camilo de Lélis reforçam as mensagens da celebração litúrgica dos últimos momentos da vida de Jesus Cristo a partir de momentos de tensão.
Essa dinâmica ajuda De Lélis a cumprir a missão principal do espetáculo: gerar reflexão.
- O público se sente mais à vontade para interagir na cena do Diabo do que na da Santa Ceia. Os vilões têm uma simpatia, eles são mais parecidos com as pessoas. Não são o modelo a ser seguido, e serão punidos. Mas a tensão serve para explicitar uma mensagem positiva, de que o bem vence no final - afirma o diretor.
Hoje, talvez não seja Aldacir Oliboni beijando os pés do público enquanto interpreta Jesus ou a estreia da atriz negra Denizeli Cardoso interpretando Nossa Senhora Aparecida que irá roubar a cena. Os "vilões" da história - adaptada com licenças poéticas do diretor - se tornaram uma atração à parte no espetáculo, uma tradição de 56 anos na Capital.
Início da encenação: 15h30min
Diabo, o transgressor
Foto: Adriana Franciosi, Agência RBS
Em meio ao deserto, Satã aparecerá como se fosse um passe de mágica. Pelo segundo ano consecutivo, o mágico e ilusionista Eduardo Toledo, também conhecido como o Mágico Dudu, fará truques com a presença de bailarinas diabólicas. A intenção é desencaminhar Jesus, oferecendo ouro, prata e tentações. Para Toledo, o personagem do diabo não é um papel difícil, mas intenso e incendiário. Em 2014, a cena em que ele faz a Bíblia pegar fogo - que será repetida neste ano - levou uma senhora a desmaiar na plateia. Toledo promete impressionar transformando um cordão em bastão ou fazendo surgir uma cartola. Vestido de vermelho e preto e com um charuto em mãos, o diabo entra em cena acompanhado pelas diabetes, que usam roupa de gorila.
- Ele dissemina pânico. Tenta levar Jesus para o reino das trevas. As pessoas acham que Jesus vai se entregar. Mas seu personagem é espantado pelo anjo - adianta Toledo.
De Lélis associa o personagem a um cigano zombeteiro:
- É típico do teatro sacro usar o diabo para zombar.
Horário aproximado de aparição*: 16h
Judas, o trágico
Foto: Adriana Franciosi, Agência RBS
Um beijo no rosto, no Monte das Oliveiras, foi o sinal que evidenciou a traição de Judas a Jesus. Protagonizado pelo ator Juliano Barros, o apóstolo traidor é um personagem forte. Era o tesoureiro do grupo de apóstolos que ganhou 30 moedas de prata para delatar aos soldados onde estaria o "suposto filho de Deus". Depois, Judas se arrepende e tenta devolver o dinheiro. Mas a ficha cai tarde demais, e Jesus já está condenado à morte - os sacerdotes, inclusive, nem aceitam a devolução da quantia. Diferentemente da história bíblica, a encenação exclui a parte em que Judas se enforca. De Lélis considera desnecessário e perigoso:
- Muitos atores já morreram fazendo essa cena, por executá-la de forma inadequada.
Horário aproximado de aparição: 16h15min
Pôncio Pilatos, o político
Foto: Adriana Franciosi, Agência RBS
Ele não queria condenar o mocinho da história, mas acaba cedendo ao apelo da multidão que gritava "soltem Barrabás, crucifiquem Jesus". Jairo Klein, ator que encena o personagem Pôncio Pilatos, diz que lava as mãos ao livrar o assassino Barrabás e condenar Jesus. Vestido como um imperador romano, com manto, anéis e uma coroa de louro, protagoniza uma das cenas mais fortes do espetáculo. Ator há 30 anos e intérprete de Pôncio há sete, Klein diz que as pessoas se engajam contra ele:
- Sou vaiado e jogam coisas em mim, como chiclete, copo de plástico. Estou acostumado a fazer vilões. Mas essa é um dos personagens mais fortes que já fiz, desperta a ira e raiva nas pessoas.
Católico não praticante e adepto dos princípios do budismo, o ator acredita que o excesso de poder praticado por Pilatos ao decidir a vida de Jesus com uma postura que vai contra a dignidade dialoga diretamente com o momento político atual. O efeito é direto na plateia:
- A encenação me deixa tenso. Represento um cara que, contra a própria vontade, teve de julgar porque o povo exigiu. Faço aquilo com muita verdade, seriedade. Aquela multidão me olhando e me vaiando me deixa tremendo.
Horário aproximado de aparição: 16h20min
16h30min: Início subida para o Morro da Cruz
(1,5 quilômetro, com duração aproximada de 1h30min)
Centurião, o carrasco
Catequista de crisma, Jorge Jacob interpreta o centurião que açoita Jesus. Comandante da tropa de soldados romanos que obedece às ordens de Pôncio Pilatos, ele conduz Jesus para a morte, no alto do morro. Porém, ao pé da cruz, converte-se e reconhece que diante dele estava padecendo o filho de Deus. A cena desperta a raiva do público, que grita para Jacob expressões como "não bate nele".
Ao final, Jacob diz que sua missão é evitar que o povo se aproxime do Jesus Aldacir Oliboni.
- Todos querem tocar nele para pegar uma benção. As pessoas entram mesmo no espírito, envolvem-se e acreditam naquilo que estão vendo.
Horário aproximado de aparição*: 17h
Soldado, o executor
Um soldado romano crucificador. É assim que Alexandre Fávero descreve seu personagem. Apesar de não ter nome próprio, o personagem tem a missão de receber o grupo de soldados que conduz Cristo até o morro, levanta seu corpo e o prega na cruz, tarefa que o ator desempenha há 12 anos. Outrora de ferro, a cruz hoje é cenográfica, feita de uma estrutura tubular de treliças reutilizáveis. A cena, que dura de 10 a 15 minutos, é o clímax da encenação da Paixão de Cristo. A cena tem a dramaticidade aumentada pelas músicas, que elevam o clima de tensão, e pelo sermão do padre, que geralmente ocorre antes ou depois da crucificação.
- A intensão de fazer mal ao herói da história gera uma carga emotiva muito forte na plateia. As vaias dependem do momento em que o país está passando. Já existiram épocas em que a tensão em relação ao personagem era maior. Hoje, o público encara mais de forma artística do que antigamente - diz Fávero.
A marreta que usa para apertar os cravos nas chagas de Jesus é, para o ator, é uma espécie de amuleto na hora da crucificação: representa um símbolo da imposição das forças sobre o amor. Ao ser pregado na cruz, escorre sobre as mãos de Jesus um líquido que simula sangue, feito com mistura de anilina e amido de milho. O momento, segundo Fávero, é de profundo silêncio, uma cena bem diferente ao restante do espetáculo. Talvez por efeito do cansaço da caminhada ou pela reflexão da subida no morro:
- Essa cena mostra um grande respeito ao ritual. A caminhada é uma espécie de portal reflexivo que a população faz, uma reflexão religiosa sobre esse acontecimento bíblico. Jesus se deixa vencer para depois ressuscitar. Aí, sim, a ressurreição é um momento festivo. A reação do público também muda. A paisagem lá de cima é arrebatadora.
Horário aproximado de aparição*: 18h
Morte, o vilão cômico
Foto: Adriana Franciosi, Agência RBS
Um misto de dança e luta entre os personagens do Anjo e da Morte em torno de Jesus crucificado antecede a cena final. Enquanto ocorre esse embate alegórico, Jesus é retirado da cruz e, com a vitória do anjo, ressuscita.
- O povo adora essa cena. Depois, todo mundo quer tirar foto com a morte. Ela é pop. Todos ficam felizes porque a morte perde, e Jesus ressuscita. O sacrifício comum de subir uma montanha a pé, em conjunto, representa uma prática de comunhão. Os vilões são aqueles que dão uma suavizada nesse sacrifício coletivo - revela De Lélis.
A personagem foi incorporada à peça em 2012, mas fez tanto sucesso que o diretor resolveu mantê-la.
- Todos ficam impressionados, pedem para tirar foto comigo e tudo - diz o ator Rodrigo Kão Rocha, de 1m90cm de altura.
Horário aproximado de aparição*: 18h15
*Os horários são uma previsão que pode variar de acordo com o decorrer da apresentação.
SERVIÇO
Início: 14h30min
Local: Morro da Cruz, Bairro Partenon, em Porto Alegre
Rua Vidal de Negreiros, 550 esquina Rua 1º de Março - Santuário São José de Murialdo