Enquanto a Copa concentrava a atenção do país, centenas de famílias da Capital carregavam meia dúzia de pertences para tentar recomeçar a vida em outro lugar. Ao menos quatro áreas particulares foram ocupadas por sem-teto no começo de julho.
É destaque a velocidade com que a população das novas vilas se multiplica, mas os órgãos que acompanham as ações não identificaram atuação organizada de movimentos de luta por moradia nessas áreas, como ocorria décadas atrás. A nova leva viria de comunidades atingidas por obras ou enchentes, cansadas de esperar pelas promessas do poder público.
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No caso de Lenemar Bastos, líder comunitário no bairro Cristal, a espera é por casa prevista no Projeto Integrado Socioambiental (Pisa), da prefeitura. Apesar de a construção do dique estar expulsando famílias da beira do Arroio Cavalhada e de a verba federal para as moradias ter sido aprovada em 2009, o reassentamento até agora não saiu. O Departamento Municipal de Habitação (Demhab) diz aguardar aprovação dos projetos pela Caixa. Saíram de lá as primeiras 200 famílias da chamada Ocupação Avipal, na Zona Sul, uma das maiores da Capital.
A vendedora autônoma Aline Coelho não consegue firmar contrato de locação, pois não tem renda fixa. Foto: Ronaldo Bernardi, Agência RBS
Em poucos dias, a população no terreno hoje pertencente à construtora Melnick Even quadruplicou, com a chegada de pessoas como a vendedora autônoma Aline Coelho, 30 anos. Despejada da casa que alugava, ela tem dificuldade para firmar novos contratos de locação, já que não tem comprovante de renda fixa - situação parecida com a de Vanderlei de Almeida, 27 anos, afastado do trabalho como gesseiro por problemas de saúde. Com pendências de crédito, é difícil para ele usufruir de programas como aluguel social.
Reintegração de posse foi suspensa
O número de ocupações recentes é difícil de determinar, especialmente por estarem em áreas privadas. Uma, no bairro Hípica, teve reintegração de posse iniciada nesta terça-feira, mas foi cancelada, segundo a Brigada Militar, porque o proprietário não ofereceu meios para retirar as casas do local. O terreno está em nome de Hele Nice Bernardes Petkov. Representantes da família alegam que foram disponibilizados seis caminhões, mas houve atraso de meia hora na chegada dos veículos, e a BM não quis esperar. A família insistirá na reintegração.
Nos casos envolvendo imóveis particulares, a intervenção do poder público é limitada. Estado e município só entram em diálogo com as comunidades se procurados por representantes. A Defensoria Pública entra como mediadora do conflito. Muitas vezes, é a partir dessa negociação que as demandas das comunidades chegam ao Estado, que oferece como alternativa os programas habitacionais existentes. Ainda assim, há casos como os de Aline e Vanderlei, que ficam sem solução.
Ocupação ou invasão
ZH optou pelo termo ocupação, e não invasão, para caracterizar o fenômeno urbano descrito nesta reportagem porque a palavra ocupação é mais aceita para descrever o ato de instalar moradia, ainda que de forma irregular, em imóvel sem uso pelo proprietário.
Já o termo invasão costuma ser atribuído a casos em que há conflito para dominação à força de um território, o que não ocorreu nos casos aqui abordados.
Família Toledo vive em prédio ocupado e tem dificuldade de bancar mudança. Foto: Ronaldo Bernardi, Agência RBS
Movimento comemora desapropriação no Centro
Um edifício de sete andares com vista para o Guaíba poderá finalmente ser destinado a sua função original e virar moradia social para cerca de 40 famílias. É o que prevê o decreto assinado neste mês pelo governo do Estado.
Construído com recursos do extinto Banco Nacional de Habitação, o prédio acabou sendo repassado à Caixa Econômica Federal e foi esvaziado nos anos 1990. Desde 2005, foi ocupado pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) quatro vezes. A última, em agosto passado, ficou conhecida como Ocupação Saraí.
- Para nós, é uma vitória - comemora o coordenador nacional do MNLM, Beto Aguiar.
Das 24 famílias que residiam no local, quase a metade já deixou o prédio graças ao aluguel social. Alguns ainda não sabem para onde ir, como o operário da construção civil Lauro da Paz Toledo, 54 anos, que vive com a mulher e cinco filhos. A maior dificuldade é encontrar imóvel no valor do benefício (R$ 500, no máximo) perto da escola das crianças.
- A lógica da casa como mercadoria afasta essas pessoas dos centros urbanos - critica a coordenadora do MNLM em Porto Alegre, Ceriniani Vargas.
Em São Paulo, a ação do movimento motivou a prefeitura a analisar a desapropriação de 41 edifícios da região central para moradia social. Em Porto Alegre, o Saraí ainda é um caso isolado. A política não está nos planos do Demhab nem do governo do Estado.
- A continuidade de iniciativas semelhantes dependerá da avaliação futura do projeto em curso - diz o secretário estadual de Habitação, Marcel Frison.
Outros três edifícios conquistados pelo MNLM na área central de Porto Alegre estão em processo de regularização. São prédios de órgãos federais.
48 mil é o número de domicílios vagos em Porto Alegre, segundo o IBGE
35 mil é o déficit habitacional na Capital, segundo o Demhab
R$ 29,9 milhões foi o valor investido pelo Estado, desde 2011, como complementação de convênios firmados com cooperativas habitacionais
14 mil é o número de unidades habitacionais construídas com esses recursos
Número de ocupações
Bairros de Porto Alegre
Partenon - 8
Sarandi - 4
Cristal - 2
Santa Tereza - 2
Outros - 11
Região Metropolitana
Gravataí - 5
Eldorado do Sul - 4
Canoas - 3
Sapucaia do Sul - 2
Cachoeirinha - 1
"Há uma periferização sem precedentes", diz especialista
Doutoranda pela Unicamp, a economista Beatriz Tamaso Mioto está na Universidade de Nova York para complementar seus estudos sobre desenvolvimento econômico e políticas habitacionais na América Latina. Por e-mail, falou com ZH.
O governo do Rio Grande do Sul anunciou a desapropriação de um prédio para garantir moradia social. É uma boa alternativa?
A desapropriação é mais que uma alternativa. É um instrumento legal e democrático que poderia garantir diversos direitos aos cidadãos e melhorar as condições de vida na cidade. A diminuição da dicotomia entre periferia e bairros de classe média e da desigualdade de acesso à moradia mitigaria dois grandes problemas urbanos: violência e mobilidade.
Há outros efeitos da política de desapropriação?
Melhores condições de habitação, principalmente em áreas mais bem localizadas, significam melhores oportunidades de emprego, educação, assistência social e serviços públicos em geral. A aproximação entre moradia e trabalho inibe a utilização de transportes individuais e reduz o tempo de deslocamento.
Qual a principal dificuldade desse processo?
A principal dificuldade é política. A terra no Brasil sempre foi uma forma segura e fácil de valorizar o patrimônio e manter a dominação política. A segunda é na esfera jurídica, de execução dos mecanismos do IPTU progressivo e da desapropriação. Do ponto de vista econômico, o que se reclama é do valor pago pela desapropriação. Outro ponto importante é de natureza orçamentária dos municípios.
Você tem estudado a questão em outras metrópoles da América Latina. Os desafios são semelhantes?
O patrimonialismo em relação à terra, a imensa desigualdade e a segregação socioespacial são traços comuns. Essas metrópoles também se parecem no que se refere às restrições orçamentárias, à destinação de parte relevante das receitas do governo para pagamento de dívidas e em relação aos problemas sociais nas cidades e seu planejamento.
E as políticas habitacionais na América Latina também têm aspectos semelhantes?
Salvo poucas exceções, essas políticas têm seguido as determinações dos organismos internacionais, como o Banco Mundial. Esses organismos pregam como solução a expansão do crédito e de subsídios para que as famílias acessem o mercado imobiliário. No Brasil, isso tem levado, em diversas metrópoles, a uma periferização sem precedentes.