Há um indisfarçável ambiente de litígio institucional tumultuando a relações entre o governo federal e o Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Ao abrir a sessão desta quarta-feira (6), o presidente da Corte, Dias Toffoli, fez um discurso repleto de recados ao presidente Jair Bolsonaro, cujos apoiadores têm organizado atos de repúdio ao STF, inclusive em frente à casa de ministros.
No pronunciamento, sem citar o nome de Bolsonaro, Toffoli respondeu aos ataques feitos pelo presidente ao ministro Alexandre de Moraes, autor da decisão que impediu a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal.
— Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, preestabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático. Irresignações contra decisões deste Supremo Tribunal Federal se dão por meio dos recursos cabíveis, jamais por meio de agressões ou de ameaças a esta instituição centenária ou a qualquer de seus ministros — disse Toffoli.
No domingo (3), Bolsonaro disse que chegou “ao limite” e não iria mais tolerar interferências em sua gestão. O embate suscita uma discussão sobre a independência entre os poderes e os limites da atuação das principais autoridades do Executivo e do Judiciário. As críticas mútuas entre Bolsonaro e os magistrados persistem desde o início do mandato presidencial, em 2019, mas jamais haviam alcançado tamanha tensão.
Assustados com a crescente virulência no discurso do presidente, os ministros já discutiam reservadamente maneiras de limitar seus poderes quando eclodiu a crise provocada pela demissão do então ministro da Justiça Sergio Moro. Estimado pela maioria dos membros da Corte, o ex-juiz deixou o cargo acusando Bolsonaro de querer interferir em investigações da Polícia Federal (PF).
A decisão de Moraes, embora não seja inédita na Corte, causou polêmica por cassar a prerrogativa presidencial de escolher integrantes do alto escalão do governo. Ex-ministro do STF, Carlos Veloso toma cuidado para não opinar sobre o mérito da decisão de Moraes, mas considera legítima a intervenção judicial no ato de Bolsonaro. Para Veloso, um dos mais prestigiados juristas do país, o Supremo cumpriu com suas atribuições:
— O Judiciário não age de ofício, não tem motu proprio. Ele foi provocado e precisa decidir. Aprendemos na faculdade de direito que na administração pública as decisões têm de ser norteadas pelo interesse público. Moraes entendeu que essa não foi. Se ele (Bolsonaro) não gostou da decisão, deve recorrer.
Antagonistas políticos, mas ambos atingidos por decisões semelhantes, o ex-presidente Michel Temer e o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo têm visão parecida com a de Veloso. Temer, que em 2018 foi impedido pelo STF de nomear a deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) para o Ministério do Trabalho, diz que é obrigação do sistema jurídico coibir eventuais abusos.
— Essas nomeações nascem de um dispositivo constitucional que diz ser competência privativa do presidente fazer aquilo. Entretanto, se há desvio de finalidade, você pode paralisar. Não é útil a todo momento um poder interferir no outro. Causa desarmonia. Mas não me parece que o ministro Alexandre tenha feito isso — pontua Temer, constitucionalista renomado.
Cardozo é mais enfático. Advogado-geral da União quando o STF proibiu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de assumir a Casa Civil em 2016, ele diz ter sido nítida a intenção de Bolsonaro de controlar a PF.
— Sou crítico do ativismo judicial, mas é próprio do Estado de direito controlar a validade de atos administrativos. E nesse caso o próprio presidente confirmou que pedia à PF que investigasse o que ele quisesse. Isso é ilegal, a PF tem de ter autonomia. Agiu bem o ministro Moraes — diz Cardozo.
Desembargador aposentado e professor de Direito de Estado na PUCRS, Ingo Sarlet considera inaceitáveis as provocações de Bolsonaro ao STF e lembra que a independência exigida pelo presidente não é absoluta. Todavia, Sarlet avalia que Moraes errou ao anular a nomeação de Ramagem. Para o jurista, mesmo que a última palavra sempre caiba ao Judiciário, o ministro não poderia ter cassado um ato do presidente em decisão liminar e monocrática:
— Achei exagerada a decisão, por mais que haja indícios que demonstrem o objetivo da nomeação. Essa intervenção, ainda que bem intencionada, deveria ser submetida ao plenário.
Um dos principais especialistas em STF no país, o professor da Fundação Getulio Vargas Ivar Hartmann advoga uma solução radical para esses impasses: proibir os ministros de proferirem decisões individuais. Coordenador do estudo Supremo em Números, Hartmann diz que nove a cada 10 decisões da Corte são monocráticas, algo inconcebível na maioria das democracias constitucionais.
— Antes mesmo de avaliarmos se isso é aceitável (a anulação de nomeações presidenciais), primeiro teria de ser submetido ao plenário. Isso não ocorreu com nenhuma das decisões anteriores. É preciso preservar a independência entre os poderes e o sistema não sustenta esse tipo de interferência — afirma Hartmann.
Relembre outros casos
Lula
Dilma Rousseff (PT) tentou nomear Lula para ser ministro da Casa Civil, em março de 2016, antes do impeachment. Gilmar Mendes, do STF, impediu a posse, dizendo entender que havia um desvio de finalidade na nomeação. O magistrado concluiu na época que a intenção do ato era impedir a prisão de Lula. Mais tarde, conversas de Lula gravadas pela PF colocaram em xeque essa tese.
Cristiane Brasil
Em janeiro de 2018, a ministra Cármen Lúcia, na época presidente do STF, suspendeu a posse da então deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha do ex-deputado Roberto Jefferson, para o comando do Ministério do Trabalho. A ministra acolheu “parcialmente” reclamação de um grupo de advogados, que chamou de “grande imoralidade” a nomeação, porque Cristiane já tinha sido condenada na Justiça do Trabalho.
Moreira Franco
Em fevereiro de 2017, a nomeação de Moreira para a Secretaria-Geral da Presidência chegou a ser suspensa por juízes federais. O argumento era que a escolha de Michel Temer visava proteger o aliado, citado por executivos da Odebrecht em delação premiada com a PGR. A Advocacia-Geral da União reverteu as decisões e Moreira Franco foi empossado. Dias depois, houve novos pedidos de suspensão da posse, mas Celso de Mello o manteve no cargo