No campo da propina, volantes, pontas e centroavantes disputam para ver quem tem o passe mais valorizado. A segunda e a sexta-feira são reservadas à cachaça, e as famílias que delatam unidas permanecem unidas. Tem ainda o estranho caso do jacaré que pensa que é crocodilo.
Se por um lado os depoimentos dos 78 executivos e ex-executivos da Odebrecht jogaram luz no submundo da política – revelando, com uma riqueza de detalhes, o modus operandi da corrupção praticada por décadas no Brasil –, por outro, chamam atenção pela curiosidade, beirando o insólito.
ZH reuniu 10 detalhes curiosos da delação da Odebrecht. Confira:
1. Goela de crocodilo
Durante a captação de valores para as campanhas do PT, Lula provavelmente teve que ter algumas aulas de biologia. É que, em determinado momento, o empresário Emílio Odebrecht, presidente do Conselho de Administração da Odebrecht, disse ao então presidente do país que seu pessoal "estava com a goela muito aberta" e que estavam "passando de jacaré para crocodilo".
Durante delação divulgada em vídeo, Emílio explica o contexto da expressão:
Procurador: Quando o senhor usou essa expressão do crocodilo e do jacaré é justamente isso, dizendo que antes eles se saciavam com um valor e estavam querendo mais, é isso?
Emílio Odebrecht: Exatamente (risos)
Procurador: O jacaré e o crocodilo são muito parecidos...
Emílio: É isso aí... Mas um vai até 3 metros, o outro vai acima de 5... (risos)
Procurador: Entendi. Então, o problema era esse, era o aumento dos pedidos de dinheiro?
Emílio: Das exigências. (risos)
O todo-poderoso da Odebrecht usou do imaginário popular em sua afirmação. Embora o maior réptil do mundo seja um crocodilo (o crocodilo-marinho macho pode ter até 7 metros), algumas espécies são menores do que outras de jacarés. Ah, e não existe crocodilo no Brasil – ao menos não o réptil.
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2. Na Lava-Jato, mochilas >>>> malas
Foi-se a época das malas de dinheiro. Em depoimento ao juiz Sergio Moro, o delator Fernando Migliaccio, que gerenciava o pagamento de propinas pela Odebrecht, afirmou que passou a usar mochilas – menores e menos suspeitas. Migliaccio disse que "dependendo das notas, cabe até uns R$ 2 ou 3 milhões numa mochila".
Mais discreto e modesto, o ex-diretor da empreiteira Hilberto Mascarenhas disse que limitava os valores entregues a políticos e intermediários para que coubessem na bagagem menor.
– Se eu tenho um pagamento de R$ 2 milhões, isso é uma mala. Ninguém pode estar transitando na rua com uma mala com R$ 2 milhões. Então, existiam também regras como, por exemplo, o valor máximo a ser pago era de R$ 500 mil, que cabia dentro de uma mochila – disse ele em depoimento ao TSE.
3. Uma mochila incomoda muita gente. 451 incomodam muito mais
Tudo bem que as mochilas são mais discretas, mas também suportam menos dinheiro, por óbvio. A própria Odebrecht informou ter repassado R$ 451,049 milhões aos políticos citados nos 76 inquéritos da Lista de Fachin.
Quando o Caso Yunes veio à tona, em fevereiro, ZH consultou especialistas pra saber se cabia R$ 1 milhão em dinheiro vivo em um envelope e descobriu que não, é necessário – veja só – uma mochila, e de tamanho grande.
Ou seja: é provável que os operadores da Odebrecht tenham usado ao menos 451 mochilas para entregar "colaborações", "apoios", "doações não declaradas", ajuda" – como eles mesmos chamam nos vídeos da deleção, nunca de "propina".
Provavelmente, como ocorre no sistema bancário, o volume teria que ser dividido em maços – as chamadas "cintas" – contendo cem notas de R$ 100. Com essa medida, que facilitaria a contagem e o transporte do dinheiro, o R$ 1 milhão se transformaria em cem maços, cada um com 1,2 cm de altura, 6,9 cm de largura e 15,5 cm de comprimento. Somados, os maços resultariam em um volume total de 12,8 litros
4. Quer propina? Só em reais
Como no Brasil a produtividade era traduzida em cifrões, a direção da Odebrecht estimulava a corrupção a ponto de pagar bônus aos executivos conforme o sucesso nas tratativas de caixa 2 e propina. Num único ano, o prêmio pelo desempenho chegou a US$ 8 milhões.
O gerenciamento dos repasses era feito em um software específico e todos os dados eram mantidos em servidores no Exterior para dificultar o rastreamento. No entanto, havia uma norma rígida para os pagamentos feitos no Brasil: tinham de ser em moeda local, conta Hilberto Silva, um dos coordenadores do Setor de Operações Estruturadas, aparentemente preocupado com o crescimento do país:
– Tinham pessoas que pediam: "Ah, ele vai viajar com a família, queria uma parte em real, uma parte em dólar". Dou os reais dele, ele vai num doleiro e compra o dólar. A moeda do país é real e é com ela que vamos trabalhar.
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5. Tudo em família
Muitos negócios em família não vão pra frente, porque, sabe como é, os problemas da empresa podem interferir em casa – e vice-versa. Na Lava-Jato, parece que funciona. A começar nas duas das principais delações do esquema: pai e filho (Emílio e Marcelo Odebrecht) não só distribuíam propina juntos, como escancararam as relações da empresa com políticos.
Alguns dos delatados também possuem laços de sangue. Em 11 casos sob jurisdição do STF, as investigações unem pai e filho, ou marido e mulher ou, ainda, irmãos. É o caso, por exemplo, do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele responde a um inquérito junto com seu pai, o vereador e ex-prefeito do Rio César Maia, por obter recursos de caixa 2 para as campanhas eleitorais dos dois.
E quem responde também pelo mesmo tipo de crime é o sogro de Maia, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Moreira Franco. O presidente da Câmara é casado com a filha do ministro. Tem outro Maia envolvido na Lista de Fachin, o Marco, mas este é gaúcho e não tem parentesco com os demais – muito embora ele tenha ocupado o mesmo cargo que hoje é de Rodrigo Maia.
6. Propina até debaixo d'água
Teve construção de estradas, de usinas, de pontes, e.... de submarinos. No âmbito da investigação da Lava-Jato, nem os empreendimentos abaixo d'água escaparam. Em delação premiada, o chefe do setor de Infraestrutura da Odebrecht, Benedicto Barbosa da Silva Junior, confessou que a empresa pagou 40 milhões de euros para o lobista José Amaro Pinto Ramos para fechar o contrato de parceria com a gigante francesa DCNS para a construção de cinco submarinos – um deles, movido a energia nuclear – para a Marinha brasileira.
Questionado pelos procuradores da Lava-Jato sobre o motivo que levou a Odebrecht a pagar 40 milhões de euros, ele afirmou que quando ele assinou a parceria com os franceses da DCNS, foi exigido que ele fizesse os pagamentos para o lobista.
7. Propina só de terça a quinta-feira
No setor de pagamentos de propina da Odebrecht, o esquema era tão organizado que os envolvidos se davam ao luxo de terem finais de semana estendidos. De acordo com o ex-executivo da empresa Hilberto Mascarenhas, a pedido dos operadores, nenhum pagamento era feito segunda ou sexta-feira. A justificativa? A cachaça, disse em depoimento ao Ministério Público:
– Eles achavam que segunda-feira muita gente faltava porque tomava cachaça no final de semana, e sexta o cara já estava na cachaça também, então nem ia trabalhar.
8. Vinho, a bebida oficial da Lava-Jato
Que cachaça que nada. O vinho parece ser a bebida oficial do esquema da Odebrecht. Ele aparece em dois momentos distintos das delações divulgadas em vídeo. Numa delas, o ex-diretor da Odebrecht Rogério Araújo contou que seu colega, o ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco, pediu para ele esconder US$ 240 mil em garrafas de vinho no início da Lava-Jato, em 2014. Segundo ele, Barusco ligou pedindo que Araújo fosse à casa dele pegar 24 garrafas de primeira linha, com valor em torno de US$ 10 mil por unidade – mais de R$ 31 mil por garrafa.
– Ele insistiu muito e eu acabei concordando em guardar na minha adega em casa. Eu pedi ao meu motorista para ir na casa dele e buscar os vinhos. Ele acondicionou os vinhos em duas malas pretas. (...) Depois de um tempo, ele fez a delação, assinou o acordo, aí a esposa dele esteve lá na portaria e deixou o recado de que eles gostariam de reaver os vinhos – contou Araújo.
Muito mais modesto, o ex-presidente do grupo Odebrecht Pedro Novis disse que a empresa fez uma série de pagamentos de recursos de caixa 2 para três campanhas do senador José Serra (PSDB) e que, na tentativa de agradar o tucano, todo ano a Odebrecht enviava à casa de Serra uma caixa com seis garrafas de vinho. O mimo custava algo em torno de R$ 4 mil ou R$ 5 mil.
9. Gre-Nal e outros clássicos do Brasileirão da propina
No campeonato da Odebrecht, o clássico Gre-Nal é jogado por PDT (Grêmio) e PMDB (Internacional). Já o famoso Fla-Flu é PT contra DEM, e o confronto paulista Corinthians x São Paulo é PSDB x PR. Isso porque os operadores do esquema de propinas escolheram times de futebol no lugar do nome de partidos nas planilhas.
O Brasileirão da propina conta com 18 equipes (ou partidos): além dos citados, constam PSB (Sport), PP (Cruzeiro), PTB (Vasco), PPS (Palmeiras), PSOL (Atlético Mineiro), PCdoB (Bahia), PSC (Náutico), PSD (Botafogo), PRB (Santos), PROS (Santa Cruz), PV (Coritiba) e Rede (Remo).
Além dos times x partidos, havia, ainda, os codinomes por time do coração do político. O deputado federal gaúcho Marco Maia (PT), por exemplo, era o Gremista nas planilhas. Seu não-parente Rodrigo Maia (DEM-RJ) era o Botafogo.
Algumas das planilhas usavam, ainda, posições do futebol para designar o cargo que ocupava o político beneficiado, com os pagamentos indo de goleiro (sem cargo) a centroavante (presidente), passando por meia (governador), volante (deputado federal), ponta (senador) e zagueiro (deputado estadual). Essa posição também determinava o "passe" (propina) do jogador. Quanto mais goleador, mais recebia.
10. Até índio ganhou propina
"Quem me dera, ao menos uma vez
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente"
Ao que parece, nem todas as tribos, como cantou Renato Russo, são inocentes. No esquema da Lava-Jato, até índios receberam propina.
Quem disse foi o executivo da Odebrecht Henrique Valadares. Em delação premiada, ele identificou que o codinome "Tribo" se referia a uma liderança indígena vinculada ao Projeto Madeira.
– Tribo. Esse cara se tornou até meu amigo, tenho até um cocar lá em casa. O chefe da tribo lá é o Antenor Karitário. (...) Pagava para ele R$ 5 mil por mês, depositado na conta da esposa. E mais R$ 2 mil para o Orlando que deve ser outro cacique lá da tribo – disse Valadares.