Foi a internet instalada em casa para os filhos fazerem as atividades escolares a distância em razão da pandemia que salvou uma mulher de 39 anos vítima de violência doméstica no interior de Bom Jesus. Ela conseguiu acessar o aplicativo WhatsApp e enviar mensagens de socorro para uma rádio de Vacaria, onde um delegado da Polícia Civil era entrevistado. O caso aconteceu na última terça-feira (23). Após o pedido de socorro, o marido da mulher foi preso em flagrante por cárcere privado, violência doméstica e posse ilegal de arma de fogo. Dois dias depois, o homem, que tem 45 anos, foi beneficiado com a liberdade provisória.
O pedido de socorro inusitado demonstra as dificuldades vividas pela vítima. Casada há duas décadas e com quatro filhos, a mulher relata que era torturada e mantida reclusa na fazenda do marido, a 24 quilômetros do centro de Bom Jesus.
— São vários anos de problemas. Só que tenho meus filhos, precisava das coisas para as crianças, aí me desesperava. Fiquei só relevando a situação para garantir o leite dos meus filhos.
A vítima relata que a relação do casal e os maus-tratos foram piorando com o tempo. O homem afastava a esposa do convívio de outros familiares ou de qualquer outra pessoa. Em duas décadas, ela chegou a pedir ajuda em outras três oportunidades, mas não conseguiu por um fim no sofrimento.
— As coisas começavam leves e iam aumentando. Acabei desistindo e voltando por causa da dificuldade de depender financeiramente dele. Não ter casa, não ter auxílio, eu ficava refém. Ninguém da família sabia que isso acontecia. Quando casei, perdi totalmente o contato da minha família. Quando nos víamos, eu só dizia que estava bem. Eles achavam que (a falta de contato) era desinteresse da minha parte. Só ia agravando a minha situação — lamenta a vítima.
O marido trabalha com pecuária e costuma fazer contratações temporárias para ajudar na lida do gado. A esposa era responsável pela casa, criação dos filhos e por ajudar na alimentação dos trabalhadores da fazenda. Para garantir o distanciamento de parentes, vizinhos e conhecidos, o homem costumava dizer que a esposa tinha problemas mentais e inventava histórias, segundo a vítima.
— Foram de 10 anos para cá, quando minha família se afastou, que virou uma tortura. Ele dizia que ninguém ia me dar abrigo, que ninguém iria em ajudar. Eu tinha vergonha também, não me abria para a minha família.
A área rural onde fica a fazenda não tem sinal de telefonia. Isolada e distante de parentes, ela se via impedida de buscar ajuda. A situação mudou com a instalação do sinal de internet para os filhos, que também permitiu que ela encontrasse uma alternativa discreta para enviar o pedido de socorro.
— Era meu o telefone. Aprendi a mexer nessas coisas há pouco tempo. O sinal não pega, mas teve a internet. Foi só com o WhatsApp que consegui conversar com meu irmão, relatar o que acontecia e decidir fazer alguma coisa.
O irmão dela é um caminhoneiro que estava em viagem fora do Estado. Por mensagem, ele encorajou a irmã a sair de casa. Sem sinal de telefone e sem poder sair de casa a pé, foi o ouvido no rádio que levou ela a dar um passo mais ousado.
— Ele (marido) disse que eu nunca sairia de lá com as crianças, que a ordem para os capatazes era para atirar em qualquer um que entrasse na fazenda. Enquanto procurava o que fazer, o radialista falou sobre o delegado estar lá na rádio. Foi quando tive a ideia de mandar as mensagens.
A entrevista na Tua Rádio Fátima, de Vacaria, era com o delegado Anderson Silveira de Lima. Informado sobre o pedido de socorro, ele imediatamente acionou o delegado Ancelmo Carvalho Camargo, que atua em Bom Jesus. Horas depois, o marido foi preso e a mulher libertada.
— Fizemos o flagrante e o inquérito policial apura outros crimes que a vítima narrou. Como o investigado está solto, há um prazo de 30 dias para a conclusão — resume o delegado Camargo, que não se manifesta sobre a decisão judicial que libertou o investigado.
A reportagem entrou em contato com o Fórum de Bom Jesus, mas ainda não obteve resposta sobre a decisão. O Ministério Público (MP) havia se manifestado pela prisão preventiva do investigado. O promotor Raynner Sales de Meira analisa os autos para decidir uma próxima manifestação.
A Justiça determinou uma medida protetiva para manter o agressor afastado da esposa. A mulher foi acolhida na casa de parentes. Apesar dos anos de relação abusiva, do medo e sentimento de vergonha, ela se demonstra confiante e aceitou contar a sua história para ajudar outras mulheres que sofrem violência doméstica.
— Quero incentivar outras mulheres. Toda essa tortura de 20 poucos anos... o meu medo era as dificuldades, mas graças a Deus nada está faltando para os meus filhos. Estou recebendo até auxílio médico. Tem muita gente a meu favor. Ele falava mal de mim, inventava histórias, mas agora as pessoas estão vendo tudo que acontecia comigo.
ONDE BUSCAR AJUDA
- Polícia Civil: 197
- Brigada Militar: 190
- Central de Atendimento à Mulher: telefone 180