Deveria ser a regra, mas é a exceção que serve de esperança. Ao completar um ano de sua inauguração, a Penitenciária Estadual de Bento Gonçalves mantém a proposta de presença plena do Estado. Os presos utilizam uniformes, são mantidos em suas celas e a comida só é servida no refeitório. O sistema de segurança funciona para evitar a entrada de drogas e celulares. Os servidores da casa relatam que os detentos costumam dizer que lá não é uma cadeia, mas sim uma clínica de reabilitação.
A direção da penitenciária aponta que o primeiro passo foi evitar a superlotação. Na antiga casa prisional, 30 detentos se amontoavam em uma cela. Hoje, no mesmo espaço, cada preso tem sua cama. São 66 celas com oito vagas cada para distribuir os presos.
— A grande diferença é a estrutura. A capacidade (da nova cadeia) é para 420 presos e hoje estamos com 381 detentos. Isso nos dá maior segurança para trabalhar. Na antiga cadeia, quem abria e fechava as celas era o chamado plantão de galeria (um preso escolhido para intermediar os contatos da massa carcerária com os servidores). Ficávamos atrás da grade (de entrada) e não tínhamos acesso aos fundos da galeria — lembra o diretor Volnei Zago, que desde 2003 atua em Bento Gonçalves.
A nova penitenciária foi projetada como uma plataforma sobre as duas galerias. É neste andar superior que os servidores penitenciários circulam, monitoram os presos e controlam a abertura e fechamento de todas as portas. A cada seis celas, existe uma grade que permite isolar a área para a realização de ações específicas.
— Proporciona muito controle, visualização e segurança a todos. Com este segundo andar, podemos transitar o dia inteiro da primeira até a última cela. Diminuiu o contato físico com os presos e, consequentemente, os riscos. Assim, não temos o plantão de galeria, como outras cadeias precisam usar (para evitar que os servidores entre os presos em número muito maior).
Com a cadeia operando da forma como foi projetada, mais regras podem ser implementadas. Todos os detentos em Bento Gonçalves utilizam o mesmo uniforme laranja. O horário de pátio e de alimentação no refeitório é cumprido à risca. Até as visitas íntimas possuem uma área específica e com protocolos definidos.
— Todos os apenados tem o mesmo tratamento, com o uniforme igual e a mesma quantidade de comida. Todos os presos são iguais e não têm diferença pelo que ganham em sua prática criminosa (do lado de fora). Antes, quem tinha mais poder aquisitivo se destacava dentro da massa carcerária. Agora, com o fornecimento de todos os itens básicos, não precisam de favor de nenhum outro preso. A estrutura física nos permite fazer este controle — destaca o diretor Zago.
A estrutura devolveu a missão de reinserção social, que é oportunizar ao apenado condições para deixar a prisão melhor do que quando entrou. A escola conta com cinco salas de aula e uma oficina de costura já funciona na ala feminina. Foram mais de 50 mil máscaras confeccionadas e doadas para a comunidade neste período de coronavírus.
— Vemos como muito positiva esta nova forma instituída, onde todos são considerados iguais e com a mesma vestimenta. Essas regras parecem mais rígidas, mas são humanizadas e trazem benefícios aos apenados. A alimentação também melhorou e há mais higiene e condições para este apenado. Claro que estamos em um período conturbado, sem visitas em razão da covid-19, mas já estamos colhendo frutos, tanto que essa penitenciária foi uma das poucas que não houve surto — descreve Regina Zanetti, presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal.
O desafio é fazer com que a operação modelo seja permanente em Bento Gonçalves e não perca o controle diante da demanda cada vez maior do sistema carcerário, como já aconteceu em outras cadeias. Um destes exemplos é bem próximo. Em 2008, a penitenciária no Apanhador, em Caxias do Sul, foi inaugurada com uma proposta semelhante, incluindo o uso uniformes e outras regras rígidas de conduta. Hoje, a maior cadeia da Serra atua no difamado modelo de galeria aberta (onde os guardas não passam da grade de acesso) e é conhecida por ser a base de duas facções que disputam o domínio do tráfico de drogas.
Conscientização e adaptação dos apenados
Para evitar o choque de cultura, entre o quase descontrole da antiga casa prisional e a cadeia moderna com regras, a Susepe realizou uma série de conversas e conscientização. Diretores, servidores penitenciários, professores e pastores se uniram para "falar a mesma língua". A primeira reclamação era sobre a anunciada regra dos uniformes — os apenados gritavam que iriam colocar fogo logo na chegada.
— Foi quase um ano de conscientização e no último mês, uma triagem. Se me lembro bem, cerca de 94% dos detentos responderam que aceitavam vir e usar uniforme. A antiga cadeia estava com um problema muito grave de superlotação, estava complicado. Aqui, trazemos mais dignidade a eles. Mas, sim, foi uma mudança muito grande de cultura e, independente de concordar ou não, todos vieram — comenta Zago.
A primeira rebelião aconteceu três meses após a inauguração. No entanto, a reclamação foi sobre a comida. Na nova penitenciária, não é autorizado a entrega de sacolas por familiares (que em outras cadeias, por vezes, são usadas para tentar esconder drogas) e nem ter comida nas celas. Por isso, foi estabelecida uma quarta refeição, uma ceia com café, leite e pão depois das 20h. Afinal, o preso não terá acesso um lanche na madrugada.
A segunda reclamação dos detentos foi sobre as visitas íntimas. Por último, os questionamentos sobre o uso dos uniformes. Estas reivindicações não tiveram negociação, restando aos apenados se adaptarem à nova realidade.
— A estrutura conta com seis "apartamentos" para as visitas íntimas, que precisam ser agendados pelo visitante e têm horário para duração: uma hora. Antes, eles faziam os encontros nas próprias celas, até seis casais ao mesmo tempo e negociavam o controle do tempo. Aqui é tudo com orientação do guarda, o controle total do Estado. O início foi uma adaptação para todos, um período de correções — aponta o diretor.
Sem droga e com mais oportunidades de trabalho
Na inauguração, foi prometida que a nova penitenciária apresentaria um novo modelo. Por isso, a cadeia mais moderna da Serra recebeu o único scanner corporal em operação da região. O equipamento é utilizado para impedir que visitas entrem com drogas escondidas no próprio corpo. A nova penitenciária fica na Linha Palmeiro, área rural de Bento Gonçalves, o que também facilita o patrulhamento do entorno.
— A cadeia antiga ficava na área central e facilitava arremessos (de drogas e celulares por cima dos muros). A estrutura era muito antiga. Aqui é excelente. Claro, tivemos que fazer algumas correções. Percebemos que eles vinham pelo matagal para fazer estes arremessos, o que foi corrigido com colocação de telas. Depois, tentaram por drones, sendo que dois foram abatidos a tiros pelos guardas. E tem o scanner corporal que é um diferencial, que torna praticamente impossível entrar com drogas. Acredito realmente que estamos zerados (de drogas no interior da casa). Por isso, eles comentam que aqui não é mais cadeia, mas uma clínica de reabilitação — comemora o representante da Susepe.
Sem drogas e a "troca de favores" entre a massa carcerária, os presos ficam mais propícios às atividades de reinserção social. Com o apoio do Conselho da Comunidade, a escola possui o espaço e móveis adequados para o ensino. A presidente Regina aponta que há reeducandos de todos os níveis, inclusive aqueles que estão aprendendo a ler e escrever dentro da cadeia.
As iniciativas para trabalho prisional também estavam avançando quando foram suspensas em razão da pandemia. O diretor Zago afirma que são esperadas 20 máquinas de costura por meio de um incentivo federal para a criação de um curso profissionalizante, além de possibilitar parceria com empresas da região para produção. A Susepe já tem um acordo com a Aapecan para fazer uniformes escolares, com máquinas cedidas de prefeitura. Além disso, 10 apenadas atuam na confecção de máscaras de prevenção contra o coronavírus.
— São 10 apenadas que nunca haviam costurado, e agora elas já estão preparada para a profissão. Já fabricaram mais de 50 mil unidades de máscaras, com doações para a Susepe e comunidade em geral. O trabalho prisional é um ponto-chave, que é preciso resolver. É necessária estas parcerias com mais empresas. Dar esta oportunidade de trabalho e renda lá dentro. Estamos no caminho, mas foi parado pela pandemia. É algo que pretendemos retomar assim que possível — salienta Regina.