A lei é passível de interpretação, e divergências são absolutamente inevitáveis pelas plurais interpretações que as normas comportam. O destino do autor confesso de raptar, estuprar e matar Naiara Soares Gomes, em março do ano passado em Caxias do Sul, quando ela tinha sete anos, é um dos casos com diferentes interpretações desde que chegou a polícia até ir para Ministério Público e envolver acusação, defesa e o Judiciário. O ponto de divergência é por qual ou por quais crimes, afinal, o réu deve responder.
A defesa, representada pela Defensoria Pública, buscou, no Tribunal de Justiça (TJ) do Estado, reverter a decisão do juízo local de que o réu, Juliano Vieira Pimentel de Souza, deve ser julgado por um júri popular. Porém, até o momento, as decisões judiciais têm sido no sentido de submetê-lo ao Tribunal do Júri, tanto na sentença original, proferida pela juíza Milene Dal Bó, da 1ª Vara Criminal de Caxias, quanto no julgamento por parte dos desembargadores da 2ª Câmara Criminal do TJ.
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A divergência, nesse caso, porém, começou bem antes da segunda instância do Judiciário gaúcho. Teve início no indiciamento pela Polícia Civil. À época — 5 de abril de 2018, 15 dias após o corpo de Naiara ter sido encontrado (21 de março) e 27 dias depois do crime (9 de março) _, o entendimento do titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Caio Márcio Fernandes, foi de que o crime praticado por Souza havia sido o de estupro de vulnerável seguido de morte e ocultação de cadáver. Neste caso, Juliano não iria a júri popular e a pena total poderia ser menor (mais de 30 anos).
— Há uma correlação estreita e nos levou a crer que a morte veio da própria violência da conduta do estupro. Esta foi a nossa interpretação do fato. Entretanto, a interpretação final é dada pelo Ministério Público ao analisar o procedimento e, como sabemos, em Direito não existem posições absolutas. É possível que o órgão ministerial responsável pela análise do caso tenha um entendimento divergente, o que é razoável, pois temos no caso concreto uma linha tênue sobre a tipificação — explanou o delegado à época do indiciamento. (colaborou Adriano Duarte)
Para acusação, Souza cometeu homicídio
A mudança de interpretação veio assim que o procedimento chegou ao Ministério Público (MP), que denunciou o réu, em 11 de maio de 2018, pelos crimes de estupro de vulnerável duas vezes, homicídio triplamente qualificado (por asfixia, com recurso que dificultou a defesa da vítima e para assegurar a impunidade de outro crime), além da ocultação de cadáver. Tese com a qual concordou a juíza Milene Dal Bó, da 1ª Vara Criminal, em 10 de agosto, ao pronunciar o réu, ou seja, determinar que ele fosse submetido ao júri popular.
Se em depoimento à Polícia Civil Souza confessou ter estuprado Naiara e tapado o rosto dela por cinco minutos com uma camiseta para abafar o choro da menina — o que a teria levado a morte —, à Justiça, ele preferiu silenciar. Na fase de instrução processual, os laudos do Instituto-Geral de Perícias foram cruciais para a decisão da Justiça. Segundo a perícia, Naiara foi morta por asfixia mecânica por esganadura e teve fratura na cervical, o que, para a relatora do processo no TJ, desembargadora Rosaura Marques Borba, "é incompatível com a modalidade culposa", já que essa pressupõe que o autor não tenha a intenção de matar e também não aceite o risco do resultado morte. Para os três desembargadores da 2ª Câmara do TJ, é a sociedade quem tem que julgar Souza.
Até a última quinta-feira (10), os defensores públicos que representam o réu não haviam sido intimados da decisão do TJ de 18 de dezembro, por isso, não disseram se irão ou não recorrer ao próprio TJ ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Especialistas divergem sobre júri
A tipificação criminal está diretamente ligada a duas questões que poderão fazer toda a diferença na vida do réu: quem será o seu julgador e o tamanho da pena. Se seguisse na linha do indiciamento policial — estupro com consequente morte —, o réu seria julgado pelo juiz da comarca e não pela sociedade, representada por sete jurados (Tribunal do Júri), a quem cabe decidir se é culpada ou inocente a pessoa acusada de praticar crimes contra a vida (consumados ou tentados), como o homicídio.
Segundo o advogado Ivandro Bitencourt Feijó, a primeira interpretação é quanto à competência do julgamento.
— O Ministério Público entendeu que eram dois dolos, o primeiro de estupro e, o segundo, de matar. O dolo é distinto: o de estuprar e, em consequência, gerar a morte é o entendimento do delegado de polícia. Diferentemente da promotora de Justiça, que compreendeu que houve o dolo de estuprar e o dolo de matar, que houve um corte entre os crimes. Não está descartada a hipótese de que o cidadão jurado compreenda como o delegado de polícia. Quem não tem formação jurídica acaba tendo dificuldade maior de entender. Até nós que temos essa formação acabamos tendo interpretações distintas —considera Feijó.
O advogado criminalista Jader Marques explica que para saber o tipo penal em um crime doloso, de intenção, é preciso verificar o que o sujeito, efetivamente, queria fazer. Para ele, casos como esse são fáceis de resolver, quando analisados tecnicamente. Ocorre que, na opinião dele, como são de grande repercussão e envolvem comoção social, o Ministério Público adota postura política e não técnica ao buscar um crime mais grave, com pena maior.
— O leigo olha para isso e diz: faz muito bem (o MP), porque é um crime bárbaro, um absurdo... o que acontece na maioria desses casos é uma discussão que é mais política, voltada para a população, do que técnica. Na determinação do tipo penal, a vontade do sujeito determina a tipicidade. Portanto, se a vontade preponderante era a de matar, a pessoa responderá por homicídio. Por outro lado, se a vontade era a de praticar o estupro e da violência necessária para a prática dos atos decorre a morte, o tipo penal será o do estupro — argumenta Jader.
O criminalista Alceu Barbosa Velho discorda de que tenha havido uma decisão política. Ele diz que o caso não se encaixa entre aqueles em que do estupro resulta a morte da vítima.
— Ao fim e ao cabo, o que ocorreu foi um crime contra a vida. Os crimes dolosos contra a vida vão a júri. O crime maior foi o homicídio. Ela não morreu por causa do estupro, morreu porque foi asfixiada, foi morta depois. Foi um crime autônomo — explana Alceu.
Ainda segundo Barbosa Velho, o Tribunal do Júri é soberano e pode ainda fazer a desclassificação do crime mais grave, de homicídio qualificado, para o de estupro. As penas bases de um e de outro crime são as mesmas, de 12 a 30 anos de reclusão. Porém, no caso do homicídio, ele poderá ter pena acrescida pelas qualificadoras e ter somadas as penas de estupro e de ocultação da cadáver, o que elevaria bastante o total a cumprir.
— Se feita a discussão pelo Ministério Público e pelo defensor público, os jurados entenderem que aquela morte ocorreu junto com o estupro e quiserem afastar esse homicídio qualificado, aí, ele responde pelo estupro que teve a morte como uma consequência — pondera Alceu.
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As teses e as penas
O que diz a defesa
:: Pede que Juliano Vieira Pimentel de Souza seja julgado por crime único, no caso, estupro de vulnerável qualificado pela morte (art. 217-A, §4º do Código Penal). Ou seja, pela tese da defesa, ele cometeu o estupro da criança, mas a morte de Naiara não foi intencional e, sim, consequência do ato. Por esse motivo, ele não seria levado a júri popular porque o caso é considerado crime contra a dignidade sexual, portanto, a lei determina o julgamento por um juiz singular, que estabelecerá a pena em caso de condenação.
:: No caso específico de Souza, porém, a estratégia da defesa ao retirar o caso do Tribunal do Júri pode estar relacionada ao tamanho da pena. Por ser um crime único (estupro seguido de morte), caberia ao juiz aplicar a pena mínima do delito e ir aumentando o tempo de prisão a ser cumprido, conforme as qualificadoras.
:: Pena mínima de reclusão: 12 anos.
:: Pena máxima de reclusão: 30 anos.
O que é competência do juiz singular? Julga crimes contra a dignidade sexual e contra o patrimônio como assaltos e furtos, sequestro e tráfico de drogas, entre outros. Os casos de latrocínio (quando a vítima de um assalto é morta pelo ladrão) também são competência do juiz singular, pois são considerados crimes contra o patrimônio com resultado morte. Após todo o rito do processo, o juiz condenará ou não o réu com base nas provas apresentadas pela acusação e defesa. Após, aplicará a dosimetria da pena.
O que dizem a acusação e a Justiça
:: Entendem que Juliano Vieira Pimentel de Souza deve ser levado a julgamento popular pois, além de estuprar Naiara duas vezes, matou a criança e escondeu o corpo num matagal perto da represa do Faxinal para acobertar a morte e o estupro. Assim, ele teria cometido quatro crimes diferentes e não um único crime, como sustenta a defesa. Na prática, a acusação estaria optando por esse caminho porque o caso se enquadraria nos crimes dolosos (intencionais) contra a vida, que são de competência do Tribunal do Júri e com pena maior. Além de somar as penas mínimas, o réu ainda teria o tempo de prisão aumentado em cada crime conforme as qualificadoras.
:: Homicídio qualificado (artigo 121 do Código Penal): crime cometido com emprego de, no caso, asfixia, recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, para assegurar a ocultação de outro crime. Ou seja, Souza esganou a criança para acobertar o estupro, uma vez que ela começou a chorar após ter sofrido o estupro, matando-o. Pena de 12 a 30 anos.
:: Estupro (duas vezes): ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena de reclusão de 8 a 15 anos para cada estupro. Somados, 16 anos (mínima) ou 30 anos (máxima).
:: Ocultação de cadáver: pena de reclusão de um a três anos.
:: Pena mínima somada: 21 anos
:: Pena máxima somada: 63 anos
O que faz o Tribunal do Júri? Julga crimes dolosos contra a vida como homicídio, feminicídio, infanticídio, aborto e o auxílio, indução ou instigação ao suicídio. É composto por um colegiado de populares _ sorteados para compor o conselho de sentença, cuja prerrogativa é declarar se o crime em questão aconteceu e se o réu é culpado ou inocente durante uma única sessão (após o processo passar por todos os ritos no cartório do Fórum). Dessa forma, o magistrado decide conforme a vontade popular, lê a sentença e fixa a pena, em caso de condenação.
Observação: Souza foi indiciado por outros dois estupros de vulnerável, ocorridos em outubro de 2017 contra uma menina de oito anos. Desta forma, seguindo o mesmo cálculo, seriam somadas mais 16 anos de pena mínima e mais 30 anos de pena máxima. Os processos, no entanto, seguem de forma separada, pois esses crimes estão em andamento na 3ª Vara Criminal.
Relembre o caso
:: Naiara saiu de casa por volta das 6h30min do dia 9 de março de 2018, uma sexta-feira. Ela morava, na Rua Vesúvio, no loteamento Monte Carmelo.
:: O destino final seria a Escola Municipal Renato João Cesa, no bairro São Caetano, onde estudava. Ela seguia sozinha até o colégio.
:: Na Rua Júlio Calegari, perto da Mozart Perpétuo Monteiro, ela foi abordada por um homem em um Palio branco. Ele a atraiu com uma mochila em formato de cachorro e disse a menina que, se quisesse uma boneca, teria que entrar no veículo.
:: Depois que Naiara entrou no carro, Souza deu a ela um mistura de suco de laranja, açúcar e cachaça, embriagando-a.
:: O réu levou a menina para casa dele no bairro Serrano onde a estuprou duas vezes (estupro vaginal e tentativa de estupro anal, conforme perícia).
:: A menina chorou e Souza a asfixiou com as mãos (esganadura, segundo perícia) e fraturou a cervical da criança.
:: Depois de matar Naiara, por volta das 10h30min, Souza escondeu o corpo da menina em um mato perto da Represa do Faxinal, na região do bairro Ana Rech. No dia 21 de março, depois de ser preso, ele indicou à Polícia Civil o local.