A indústria de Caxias do Sul crescia rapidamente com o advento da Segunda Guerra Mundial — algumas fábricas foram declaradas de interesse militar e deveriam trabalhar com capacidade plena para as forças armadas. Nos 1940, a cidade já tinha 40 mil habitantes, sendo que mais da metade residia na zona urbana. Iniciava o ciclo que superaria o comércio e a agricultura.
O centro de Caxias do Sul já era há tempos referência da elite. Fora do perímetro central, surgiram os loteamentos criados para os operários, como o bairro Medianeira e a Vila Imperial. Segundo historiadores, havia uma preocupação com as favelas e o poder público tentava solucionar o problema habitacional. A falta de habitação constatada nos 1930 e 1940 agravou-se na década de 1950 e uma série de leis foi estabelecida para regulamentar a criação de novos bairros. Contudo, a legislação não conseguiu acompanhar a velocidade do crescimento desordenado.
Algumas áreas acidentadas da cidade tinham declives muito acentuados e portanto, houve a interrupção do arruamento dos bairros e loteamentos oficiais. Eram áreas que não haviam sido reivindicadas pelo município e permaneceram na condição de terras devolutas (sem destinação específica). Assim nasceram as ocupações irregulares no Burgo (atual Jardelino Ramos e São Vicente), no Marechal Floriano e ao lado dos muros do Cemitério Público Municipal, hoje Euzébio Beltrão de Queiróz. Havia outros recantos que ganhavam denominações ofensivas como a Capela da Lambança.
Por ter mais moradores, o Burgo era a comunidade mais notória. Conforme o historiador Aldo Migot, 83, aquela parte da cidade era uma espécie de balneário com algumas habitações esparsas nos anos 1920 e 1930.
— O Jardelino tinha bastante habitações, havia o Clube Eurico Lara, que foi um grande goleiro do grêmio, o pessoal da cidade ia dançar lá nos finais de semana, em bailes concorridos. Havia um córrego de água e estrutura com chuveiros. Tinha plantação de hortas, verduras e gado leiteiro de um grupo de moradores que estavam próximo da cidade e ganhavam dinheiro com isso. E de repente as famílias começaram a invadir a área da terra devoluta nos anos 1940 — diz Migot.
Com o crescimento da cidade para o leste, essa área não demarcada começou a ser ocupada por pessoas muito pobres. Do alto do morro, era possível vislumbrar a riqueza da área central.
Num depoimento para a historiadora Maria Abel Machado, o tabelião do Cartório de Registro de Imóveis da 2ª Zona de Caxias, Olyntho Castilhos afirmava que "a população que ocupou o Burgo, inicialmente, era constituída quase só de mulheres, algumas mães solteiras, que vinham para Caxias em busca de trabalho e se empregava na casa de famílias".
Por não terem recursos, segundo Maria Abel, as mães construíam barracos de papelão e latas de azeite, passando a morar em subabitações. A condição de miséria não permitia pagar aluguel ou comprar um terreno para construir a própria moradia. O Burgo se constituiu na primeira favela da cidade e era tratado pejorativamente pela imprensa como se fosse um gueto. E realmente era. Não havia tratamento de esgoto, não havia água encanada e faltava comida. A criançada dali, da zona do cemitério e de outras comunidades iam ao Centro pedir esmola na porta dos cinemas.
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Experiências diferentes
Pais e filhos de famílias pobres de Caxias do Sul dormiam em estrebarias e até mesmo cochos, segundo denunciava a Sociedade Caxiense de Auxílio dos Necessitados (Scan) em 1950. A situação de penúria levou o presidente da entidade, Aparício Postali, a fazer um desabafo no jornal Pioneiro de 15 de julho.
"Posso seguramente afirmar que 90% dos pobres que amparamos não são caxienses. Todos eles vêm de fora, São Francisco, Bom Jesus, Vacaria, Antônio Prado. Caxias, como todo centro, atrai enormemente as populações da colônia e da campanha" alertava Postali numa entrevista, revelando que a entidade prestava auxílio a 100 famílias.
A solução, para a Scan, era a educação, pois as famílias vendiam casas e terrenos para comprar rádio ou gastavam o ordenado com bens supérfluos. Novamente, o discurso separava os caxienses dos demais.
Para Migot, o primeiro elemento importante para compreender essa nova Caxias é o êxodo rural.
— As pessoas saíam dos campos porque o caminhão e o trator começavam a substituir o peão, o domador de cavalos e o tropeiro. Eram trabalhadores que conheciam muito bem o serviço deles, mas só isso. Eles não tinham terra deles para administrar, tomar decisões, para fazer negócios. Eles faziam a mando de outros nas fazendas. Quando perderam o emprego e vieram para a cidade, não sabiam fazer nada e tiveram uma dificuldade enorme de se ambientar na cidade. Eles vinham sem recursos — contextualiza Migot.
Havia outra diferença, pois o caxiense teve outra experiência. O historiador lembra que houve uma reforma agrária com os imigrantes no tempo do Império, pois o governo brasileiro deu assistência no início da colonização, com condições para pagar a terra e trabalho na construção de estradas. Quando a leva de novas famílias chega nos anos 1930 e 1940, não há mais esse apoio, não há lotes para vender, não há barracões para abrigá-los temporariamente.
Conforme Maria Abel, os primeiros 75 anos da história de Caxias do Sul, que representavam o período de maior contribuição da imigração italiana, chegavam ao fim. A partir da década de 1950, a composição da população caxiense mudou. A fisionomia de "rostos muitos brancos, olhos claros e cabelos loiros" passou a ter a pele morena, cabelos e olhos escuros, marcando a chegada dos "brasileiros". Caxias do Sul iniciava a segunda metade do século XX com quase 59 mil moradores, sendo 36 mil somente na área urbana.