Em setembro de 1958, Caxias do Sul estava efervescente. A Agência Modelo de Estatísticas informava que a cidade contava com 90 mil moradores e três voos semanais da Varig ligavam a região ao resto do país. As grandes orquestras do centro do país lideravam a lista dos long plays mais vendidos, Elvis Presley animava os bailes das matinês e havia um grande esforço para ingressar na era da modernidade. Tudo parecia primaveril.
No lado obscuro da cidade, o ritmo era apressado e perigosamente precoce. Uma semana antes da visita do presidente italiano Giovanni Gronchi e do presidente da República Juscelino Kubitschek e do vice, João Goulart, programada para o dia 13 de setembro, o jornalista e escritor José Bicca Larré trouxe a inacreditável história de um grupo de nove crianças e adolescentes envolvidos em furtos e assaltos. O "jardim da infância do sindicato do crime", como o escritor definiu, dormia numa antiga torre da Catedral Diocesana. Do esconderijo, partia para cometer crimes. Como infratores com idades entre 10 e 18 anos haviam se organizado de tal forma em pleno coração da cidade ninguém soube explicar. Esse fato escancara como Caxias do sul vivenciava, há 60 anos, o primeiro boom da violência urbana, reflexo do crescimento desordenado e do agravamento de problemas sociais que se iniciaram 15 anos antes.
Hoje, aos 89 anos, Larré não lembra dos detalhes da história, mas diz que Caxias tinha problemas com a gurizada que fugia de casa ou havia sido abandonada pela família. A existência do "jardim da infância" havia sido revelada pelo então delegado de polícia Jaime de Bermudes Ramiz. Embora a polícia e a imprensa enxergassem a gurizada levada até a delegacia como um grupo formado unicamente para a vida criminosa, a questão seria muito mais complexa.
Era bem possível que a união deles fosse provocada por outros motivos, como deixou transparecer o próprio Larré. Quatro deles não tinham pais, três tinham pais mas não viviam com a família e outros dois tinham pais separados. A turma era muito pobre, estava desgarrada, solta e sem qualquer supervisão familiar. Juntos, buscavam vantagens e autoproteção. Para a cidade, pareciam guris sem futuro, conhecedores da lei que impedia o encarceramento de crianças e adolescentes com adultos ou a manutenção de menores de 18 anos em reformatórios, serviço que inexistia em Caxias.
O líder tinha 18 anos e o mais novo recém havia completado 10 anos. Com o chefe do bando, seguiam outros jovens com apelidos como Torto, Cabeção e o Cafuncho. Outros nove integrantes do bando não haviam sido identificados. O grupo teria começado com o furto de doces e frutas no comércio. Após, passou a mirar objetos de valor e sonhava ter armas de fogo. Dezenas de arrombamentos em empresas e moradias eram atribuídos a eles.
Os jovens haviam escolhido a plataforma dos sinos da catedral pela facilidade de acesso e discrição. Quem se importaria com uma velha torre de madeira se torres de concreto verticalizam cada vez mais Caxias? Para subir, os guris usavam as cordas dos próprios sinos. Acordavam no dia seguinte com o badalar e observavam a praça e arredores, sem serem notados. A torre, segundo o médico e escritor Francisco Michielin, ficava nos fundos da igreja e consistia numa construção de madeira de dois pisos, já demolida.
Mesmo após a detenção, não parecia importar quem eram essas crianças e adolescentes ou de onde vinham. Assim como ganharam destaque pelos crimes e pela organização, esse grupo foi esquecido na semana seguinte. Num tempo em que a vida no Brasil e no mundo ganhava um novo jeito de ser, o "jardim da infância" seguiria adiante, crescendo e aprendendo em seus anos dourados. Alguns deles, logo adiante, se tornariam criminosos de quilate, com outros apelidos, e seriam vistos como inspiração para outros jovens, que, por sua vez, se tornariam bandidos ainda mais temidos num ciclo sem volta.
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Impacto
O final dos anos 1950 foi um período conturbado na área de segurança pública. Não por acaso, numa reformulação editorial o Pioneiro passou a dedicar uma página inteira a cada edição para fatos relacionados à criminalidade. Os homicídios ganhavam, na imprensa, narração semelhante aos folhetins e fascinavam a população.
Os furtos de veículos eram diários e surgiam os assaltos violentos. Em maio de 1958, um rapaz de 28 anos, no caminho do trabalho, havia sido espancado por quatro assaltantes no Marechal Floriano e precisou de atendimento no Hospital Pompéia. Com baixo efetivo, a polícia não conseguia combater a criminalidade. O presídio da cidade era um verdadeiro inferno para os padrões da época. Construída abaixo do nível da rua, no cruzamento da ruas Sinimbu e Coronel Flores, em São Pelegrino, a cadeia alagou com a chuva, o que forçou a transferência temporária de 40 presos para o quartel do Exército — o debate era pela construção de um novo presídio em outro local.
Meses antes, o Lions Clube havia lançado uma campanha apelando às famílias que não presenteassem os filhos com armas de brinquedo na cidade. A organização humanitária percebia a cultura da violência e temia o crescimento da delinquência, impulsionado pela presença de crianças pedintes e abandonadas pelas famílias e outros problemas da juventude. As autoridades chegaram a um consenso sobre a necessidade de combate aos receptadores que adquiriam os produtos furtados pela gurizada e ao envolvimento dos adolescentes em crimes.
— Eu era repórter esportivo na época, mas lembro que havia menores abandonados. Eram poucos na proporção. Existia antigamente o Juizado de Menores, onde a figura do (Theodósio) Rocha Netto era temida. Ficou gravada na memória da gurizada a seguinte frase: cuidado que o Rocha Netto vai te pegar — relembra o médico e escritor Francisco Michielin, 75.
Em setembro de 1960, a Câmara de Vereadores trouxe novamente a problemática das crianças e adolescentes expostos nas ruas. Naquele mês, 15 adolescentes estavam recolhidos na mesma cadeia dos adultos por diversos crimes. Sob apelo popular, o Legislativo aprovou o projeto do então vereador Pedro Simon e o Executivo criou, em 1962, a Comissão Municipal de Amparo à Infância (Comai).
— Pela primeira vez analisávamos firmemente o problema e buscava-se uma solução. Sabíamos que sem amparo aos jovens, a violência cresceria ainda mais. Houve todo um movimento e acredito que a cidade estaria numa situação pior não fosse a Comai — recorda Simon, 88.
A Comai unia esforços de empresas, entidades e poder público para acolher crianças e adolescentes em situação de risco, a maioria do Burgo e do Euzébio Beltrão de Queiróz.
— Havia um grupo que pensava assim: "o trabalho educa". Mantínhamos essas crianças, cujos pais eram muitos pobres, que estavam correndo risco, em empresas da cidade, onde aprendiam uma profissão, se tornavam até arrimo de família. Tínhamos mil jovens na Comai em determinada época, mas claro havia uma necessidade maior. Enfim, quando a gente podia dar uma assistência ou na escola receber a pessoa e encaminhá-la, esses jovens se superavam — conta o professor aposentado Aldo Migot, 83.