A vizinhança de Angela Moraes Sá, a Toti, e de Andreza Ribeiro Sá, no centro de São Marcos, conviveu anos com os problemas que todo ponto de venda de crack traz consigo. Mas a noite dos horrores foi o apogeu e, ao mesmo tempo, a hecatombe que envolvia a aura negativa do castelinho de mãe e filha, um casebre estreito de dois pisos erguido em área pública.
Para extirpar a antiga referência de usuários de drogas na área central de São Marcos, perto do Monte Calvário, um traficante ordenou a morte das duas mulheres e a destruição com fogo do local, tipo de crime muito comum em Caxias do Sul. O incêndio na madrugada de 3 de maio do ano passado, porém, alastrou-se e destruiu outras três moradias no entorno. Pessoas sem envolvimento com o tráfico, a maioria famílias pobres, perderam móveis, roupas e objetos de valor.
O castelinho trouxe incômodos infindáveis durante 10 anos ou mais. Angela caiu no vício após ter vindo de Lages (SC). Em pouco tempo, arrastou Andreza. Para ter as drogas por perto, as duas optaram pelo comércio de crack, um negócio que raramente tem chance de ser mantido sem violência quando o dono é um dependente químico. Parentes tentaram internar mãe e filha em diversas ocasiões, mas a resistência era muito maior. No submundo do tráfico, um dos maiores temores dos chefes é que o comparsa se livre das drogas e vire informante. Mesmo endividada com o fornecedor de Caxias, Angela teria feito o impensável: trocou de traficante.
Seis meses antes do duplo assassinato, criminosos já haviam acordado os vizinhos a tiros. Foram diversos disparos contra a casa de Angela e Andreza, mas mãe e filha escaparam sem ferimentos. O caso nunca chegou a ser registrado, pois, como define um morador, quem tem "rabo preso" não procura a polícia. A investigação policial indicou que as duas deviam cerca de R$ 3 mil, o equivalente a três cestas básicas e meia. É pouco, mas uma quantia imperdoável para bandidos regidos por quadrilhas organizadas.
— Na verdade, os caras queriam o ponto para traficar, queriam queimá-las, mas, no fim, destruíram mais três casas junto — conta uma pessoa que tinha relações com mãe e filha.
Até hoje, nem a polícia sabe como mãe e filha foram assassinadas, tampouco se estavam vivas quando o incêndio começou. As famílias prejudicadas pelo fogo ganharam ajuda da prefeitura para reconstruir os imóveis e adquirir os bens. Ninguém quer recordar o passado recente. Sobre o terreno do castelinho, a intenção do município é erguer uma pracinha, como uma espécie de memorial contra a violência.
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Conforme o Ministério Público, o mandante do crime foi Silvio André Rodrigues, o Gordo. Ele estava em livramento condicional em Caxias do Sul e voltaria para o regime fechado antes de ser indiciado pelo duplo assassinato, segundo a Justiça. Contudo, teve um acidente vascular cerebral (AVC) e hoje usa cadeira de rodas e responde em liberdade. Silvio tem condenações por tráfico de drogas em São Marcos e em Caxias.
Conexões perigosas mataram Jhenifer
Nas redes sociais, Jhenifer Rech Borges, 19 anos, era uma rainha, uma celebridade entre caminhoneiros e fãs de caminhão. Em São Marcos, cidade onde nasceu, a jovem era quase anônima, pelo menos até a madrugada de 28 de julho, quando levou um tiro fatal na saída de um bar. Com ela, morreu Carlos Alexandre Rodrigues de Oliveira, o Mulambo, 34. Os assassinos seriam dois e ninguém mais os viu.
Com exceção de autoridades, ninguém em São Marcos se sente confortável para falar abertamente sobre o triste fim de Jheni dos Caminhões, como era mais conhecida na internet. A maioria tem medo de represálias. É mais fácil obter informações sobre a garota nas dezenas de homenagens postadas de várias partes do país em redes sociais e no YouTube.
Sem ter convivido com o pai, Jheni foi criada boa parte da vida pela avó. Sonhava ter uma cegonheira para percorrer o Brasil e fazia questão de ressaltar isso na página que mantinha numa rede social. Nos últimos dias, tentava encontrar trabalho para ter dinheiro e fazer a carteira de habilitação. Morreu na guerra envolvendo gente ligada ao tráfico.
Mulambo era conhecido da polícia. Foi parceiro do narcotraficante internacional Ariovaldo Bopsin da Silva, o Mulita, 44, morto em confronto com a Brigada no dia 30 de maio, em São Marcos. Assim como Bopsin, Mulambo era da geração que perdeu espaço com a expansão das facções dos presídios.
Com espaço restrito na distribuição de drogas, os dois teriam migrado para assaltos. Para a polícia, era possível que ainda estivessem ligados ao tráfico, embora sem a mesma influência de cinco, seis anos atrás.
Jheni, contam conhecidos, era amiga de uma parente de Mulambo. Tinham uma turma em comum. Gostavam de festas e curtiam a noite são-marquense. Na noite de sexta-feira, horas antes de ser baleada, Jheni foi vista num pub badalado da cidade. Dali, partiu com as amigas para outro bar. Na saída, já por volta das 3h de sábado, Mulambo ofereceu carona para a turma. No caminho até o carro, a poucos metros do bar, ocorreram os disparos. Mulambo levou vários tiros. Para Jheni, bastou um. Os executores fugiram num Gol e não seriam da cidade.
Surgiram boatos de que Jheni namorava Mulambo e, assim, virou alvo. Nada justificaria o assassinato, na visão da Polícia Civil.
— A cena é esta: ela se encontrou na festa com a parente dele (Mulambo). Depois, decidem ir para casa, pegar carona. Enfim, mesmo que fosse namorada, ela morreu de graça. Pode até ter sido baleada sem intenção no meio da confusão — pondera o delegado Edinei Albarello, responsável pela investigação.
— No dia em que ela foi enterrada, fazia um mês que ela tinha feito 19 anos. Fazia quatro meses também que havia morrido a bisavó dela — lembra alguém próximo da garota.
Jheni teria sido uma exceção na guerra do tráfico de São Marcos e se eternizou no mundo virtual onde era uma das protagonistas.