Um pedaço da paisagem que leva à comunidade de São Virgílio da 6ª Légua pelo bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul, destoa da vegetação que margeia quase toda a estrada até a localidade. Pouco depois do acesso à Estrada Municipal Abramo Perini pelo Travessão Solferino, um portão em ruínas e uma cerca com os arames arrancados parecem dar acesso a um deposito de lixo improvisado.
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No chão, uma mistura de garrafas, tecidos rasgados, estátuas quebradas e, principalmente, alimentos em decomposição, já cobre quase toda a grama na entrada do terreno. Uma escada dá acesso à parte inferior da área, onde a vista repleta de árvores, cruzada por um córrego, também já começa a perder espaço para os resíduos.
Conforme quem frequentava o local, porém, não foi sempre assim: a área pública de pouco mais de 11 mil metros quadrados foi batizada em 2008, por lei, como Parque Ecológico Reino dos Orixás. Desde 2001, era utilizada para depósito de oferendas em ritos afro-umbandistas, por meio de um convênio firmado com o município. No último mês de maio, no entanto, a prefeitura solicitou a desocupação da área, que agora recebe denúncias de abandono.
— Era uma área que (até 2001) estava sendo usada como boca de fumo e lixão. Nós encontramos lá geladeiras, pneus, fogões e muito entulho. Entramos com um projeto junto à prefeitura, que foi aprovado, e fazíamos a manutenção do local, com benfeitorias — lembra Saul de Medeiros, presidente da Associação de Umbanda de Caxias do Sul, que abrange 268 templos filiados.
De acordo com Medeiros, a ocupação da área tinha como objetivo concentrar a entrega de oferendas por adeptos das religiões, evitando a poluição de outros espaços públicos da cidade. A entidade elaborou uma cartilha com orientações para os ritos, que deveriam priorizar materiais orgânicos, e uma vez por mês recolhia os resíduos do Parque Ecológico Reino dos Orixás.
— Chegamos a recolher quase uma tonelada de resíduos por mês. Queríamos fazer uma parceria com a prefeitura, diante desse convênio, para que a Codeca pudesse nos ajudar a recolher e também para cortar o mato que estava crescendo. Quando entramos com esse pedido, recebemos a intimação para deixar a área em 30 dias. Fomos despejados, só que agora a área não está sendo usada para nada. Voltou a ser um deposito de lixo — lamenta.
Além da manutenção, Medeiros diz que a entidade realizou diversas melhorias no local nos últimos 17 anos, como a construção de um pórtico, a colocação de cercas e paralelepípedos na entrada e uma escadaria para o acesso à parte de baixo do terreno.
Fotos do local em anos anteriores mostram o pórtico adornado com duas estátuas de leões, com um portão de ferro e uma placa escrita "Reino dos Orixás". Com exceção da estrutura do pórtico, de concreto, todos os itens foram furtados. A cerca de arame também praticamente não existe mais.
— Algumas pessoas, por hábito, ainda estão largando oferendas lá. E como está aberto, os cachorros estão pegando restos, espalhando. Então, a comunidade está revoltada conosco. Mas a culpa não é nossa, é uma posição do governo, irredutível — reclama Medeiros.
Umbandista acusa preconceito religioso
Desde que foi avisado de que o Parque Reino dos Orixás não poderia ser mais acessado, Saul de Medeiros diz que tentou contato com o prefeito Daniel Guerra (PRB) em três ocasiões na tentativa de reverter a decisão. No entanto, nunca foi recebido.
— Nas três vezes, eu liguei e informaram que ele não tinha agenda. É a primeira vez, desde 1988, que não conseguimos conversar com o prefeito. Se tu não recebe a maior entidade do município que representa as instituições, tira a área dizendo que vai ser destinada a outra coisa e está lá abandonada, nos faz pensar em preconceito religioso — critica.
O Pioneiro perguntou à prefeitura a razão de Medeiros não ter sido recebido por Guerra. Por e-mail, o prefeito informou apenas que "o convênio se encerrou em 17 de junho de 2016. A conversa deveria ter sido realizada ainda na administração passada, quando havia prazo legal para renovação".
Essa é a mesma explicação dada para a solicitação da área. Conforme a prefeitura, o convênio havia sido renovado pela última vez em 2011, por cinco anos. O presidente da Associação de Umbanda, porém, diz que a entidade não foi notificada na época e que, de qualquer forma, isso não justifica a falta de diálogo.
A secretária Municipal do Meio Ambiente, Patrícia Rasia, afirma que a decisão foi explicada ao presidente da associação pela equipe técnica da pasta.
— Ele foi recebido na Semma, onde isso foi explicado. Tem processo administrativo registrado — garante.
Para Medeiros, a medida deixa as cerca de 500 casas de umbanda de Caxias em um impasse.
— A oferenda é feita nos templos e depois levada para esses locais porque faz parte do rito. As religiões afro-brasileiras têm relação com a natureza, são extremamente ecológicas. Tudo o que é feito no templo tem que voltar para a natureza. Agora, (as oferendas) vão voltar para as encruzilhadas, para as ruas e locais que não poderiam ser utilizadas para isso, como represas. Infelizmente, o pessoal não vai respeitar, porque não tem outra opção — lamenta.
A secretária do Meio Ambiente, no entanto, diz desconhecer o problema:
— Esse convênio foi celebrado em junho de 2011 e se encerrou em 2016. Essa análise religiosa, sobre esse problema, eu não tenho informação. O convênio encerrou e por uma questão legal não foi continuado.
Secretaria prevê revitalização de áreas verdes
A prefeitura de Caxias diz ter conhecimento do estado de deterioração da área. Segundo a Secretaria do Meio Ambiente, já foram realizados serviços no local, que se encontra aberto devido ao furto do portão. A última vistoria, conforme a pasta, foi realizada no dia 9 de julho. A prefeitura diz que está dando encaminhamento aos trâmites para conseguir outro portão e fechar novamente o espaço.
— Nesse local, em específico, estavam acontecendo muitos roubos do cadeado. A Codeca é a responsável pela limpeza e vai fazer esse trabalho. Mas se existe o acúmulo, é porque as pessoas seguem descartando no local. Temos que conscientizar as pessoas que existe o contêiner, a coleta, para que façam esse descarte correto — afirma a secretária Patrícia Rasia.
A prefeitura não divulga os planos para a área, mas afirma que o espaço, "como outras áreas verdes vigentes no município, está sendo avaliado para atender a projetos ambientais".
— Temos um projeto, que está saindo do papel, para todas as áreas verdes. Está passando pela área jurídica, é uma qualificação para que toda a comunidade possa utilizar esses espaços — antecipa a secretária.
Patrimônio público
Desde o ano passado, prefeitura de Caxias trabalha na liberação de imóveis públicos ocupados de forma irregular. Conforme o município, a questão está sendo tratada pela Procuradoria e os processos abertos aguardam decisão judicial. Também está em andamento o inventário do patrimônio público. Até o momento, foram levantadas e avaliadas 672 áreas. A prefeitura prepara uma licitação para um novo software de acompanhamento e uma legislação para regrar o patrimônio imóvel.