Quando o assunto é maternidade, pouco se fala sobre os desafios desse período na vida das mulheres. Por isso, um mês voltado especialmente ao debate e ao cuidado com a saúde mental das mães foi idealizado desde 2020. É o Maio Furta-cor. A necessidade de trazer a pauta ao debate ocorreu porque, de acordo com a organização da campanha, uma a cada quatro mulheres sofre violência no parto; uma a cada quatro mulheres sofre com a depressão pós-parto; e uma a cada duas mulheres perde o emprego depois de ser mãe.
Para se ter uma ideia da dimensão da situação, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), toda a mulher está suscetível a desenvolver transtornos mentais durante a gravidez e no primeiro ano após o parto. Conforme dados do Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, em 2021, a cada 100 mil nascimentos, o Brasil teve uma média de 107 mortes de puérperas nos primeiros 42 dias após o parto.
Representantes da campanha em Caxias, a psicóloga Michele Bueno e a doula e consultora em amamentação Larissa Simon, lideram o movimento no município há dois anos. Ao todo, são 20 voluntárias que fazem parte da campanha, que busca sensibilizar a sociedade sobre a saúde mental materna.
— A gente já percebe que, nesse ano, tivemos uma abrangência bem maior, seja com apoiadores ou com voluntários. Um marco muito importante foi a aprovação de um projeto de lei, no qual Caxias passa a instituir o Maio Furta-cor e visa trabalhar, durante o mês todo, a causa da saúde mental materna — explica Michele.
Desde o dia 17 de abril de 2023, o Maio Furta-cor faz parte do calendário oficial do município. A lei nº 8.929, que institui o mês dedicado a ações de conscientização, incentivo ao cuidado e promoção da saúde mental materna, foi proposto pela vereadora Rose Frigeri (PT).
— O impacto principal da aprovação dessa lei é nas políticas públicas. Nesse ano, vamos conseguir trabalhar o treinamento das equipes das unidades básicas de saúde (UBS) para a sensibilização dessa questão de mapear sintomas e sinais de adoecimento em gestantes e puérperas — comemora Larissa.
A doula ainda explica que o cuidado com a saúde mental materna ainda é um tema pouco abordado na área da saúde e que ainda não existe uma formação especifica para os profissionais da saúde aprenderem sobre o assunto.
— Sabemos que situações de violência obstétrica são prevalentes nesse sentido. São mulheres que tiveram experiências difíceis de parto e pós-parto, prematuridade, situações sociais adversas, como fome, violência doméstica, gravidez não planejada... Diversas situações que podem contribuir para o adoecimento — destaca Larissa.
Além das situações sociais e psicológicas, Michele também pontua que a romantização da maternidade contribui para que mães se sintam pressionadas. Para a psicóloga, quando se tem uma sociedade que romantiza e idealiza a maternidade, isso também coloca as mulheres em uma posição de pressão e contribui para o adoecimento.
— As mulheres não se sentem acolhidas para falar que estão cansadas ou sobrecarregadas. A sociedade idealiza uma maternidade na qual a mulher precisa estar sempre alegre e isso não é a realidade o tempo todo. Existem desafios durante o período de gravidez e puerpério — afirma.
Rede de apoio faz a diferença
A empreendedora Uine Monteiro convive com a realidade de cerca de 11 milhões de mulheres brasileiras, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, de ser mãe solo.
— Tem uma culpa que nós, mães solo, carregamos, que é até pouco falada entre nós mesmas: a culpa de termos escolhido o pai errado. A culpa nunca é de quem fica, mas de quem abandona. Nós temos que arcar com essa responsabilidade de explicar para os filhos, porque eles perguntam: por que o pai não vem? — destaca Uine.
Para ela, a sobrecarga de tarefas e psicológica é enorme. Mãe de duas crianças, uma de três anos e outra de um ano e meio, Uine tem dois empregos atualmente: possui um ateliê de produtos voltados à maternidade e representa uma deputada federal no município.
— Quando tu estás com uma criança e a outra chora, aí precisa correr para ajudar, mas também precisa tirar um tempo para si. Mas, que hora? Quando coloco as crianças para dormir já é quase 22h. E aí preciso fazer as tarefas da casa, a criança acorda de novo e não tem quem ajude a atender a criança — conta.
Uine afirma que tirar um tempo para o autocuidado é uma atividade rara no seu cotidiano. Ela afirma que tudo se torna mais difícil quando as pessoas não estão dispostas a ajudar. Uine conta que, quando é algum compromisso profissional, a rede de apoio auxilia com mais facilidade. Mas, quando se trata de um momento para o autocuidado, a situação é mais complicada.
— Eu vivo correndo. Quando sobra um tempo, tento fazer alguma coisa. No final de semana, ninguém convida as crianças para ir ao parque, fazer alguma coisa diferente. Isso que eu moro, praticamente, ao lado dos meus pais. Mas as pessoas não assumem esse compromisso contigo — explica Uine.
Ela destaca que já tentou, mais de uma vez, pedir ajuda para a rede de apoio, seja família ou amigos, mas que, no final das contas, a ajuda nunca vem. Mesmo em momentos em que o convite é para uma ida ao parque ou alguma atividade de lazer com as crianças, Uine conta que as respostas são sempre negativas.
Filhos atípicos: um desafio pouco debatido
Conviver com o preconceito e a falta de informações sobre o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, o famoso TDAH, é comum no dia a dia de Tatiane de la Pase. Mãe de gêmeos com o transtorno, ela convive com a dificuldade da inclusão dos filhos. Para ela, uma maternidade com duas crianças com TDAH traz muitos desafios. Hoje, os filhos de Tatiane têm 14 anos, mas, apesar de já estarem na adolescência, os desafios continuam.
— Faz 20 anos que eu estou tentando fazer faculdade de direito e só agora consegui. Aí as pessoas se perguntam: por que não dá? Por que a gente não consegue realizar essas nossas questões? Esse espaço foi fruto de muito sonho meu. Mas é difícil realizar nossos desejos porque o cuidado cai exclusivamente sobre nós, mães — pontua.
Quando os filhos estão em fases de maior dificuldade e que precisam de mais atenção, a primeira pessoa que deixa suas tarefas e vontades de lado é Tatiane, a mãe. Ela conta que tem um cuidado extra com a criação dos filhos para que, no futuro, quando forem pais, tenham a responsabilidade de dividir o cuidado das crianças.
— A adolescência, por si só, já é uma fase difícil. Os pais, em geral, têm dificuldades com crianças típicas. Eles já tem dificuldades de se relacionar com os seus adolescentes, então, exige ainda mais tempo. Infelizmente, hoje, temos que preparar nossas meninas para se preocuparem e se responsabilizarem pelos filhos. Não que isso seja o certo, mas porque não temos as ferramentas necessárias para que seja diferente — afirma.
Até com as aulas a mãe encontra dificuldades de adaptação. Tatiane conta que precisou tirar um dos filhos da escola que frequentava porque sentia que não existia um esforço por parte da instituição para auxiliar as crianças.
— Minha vontade era de fazer uma gritaria, mas eu não pude porque me preocupei com quem cuidaria das crianças ou onde elas ficariam. Isso traz para a gente, que estamos sempre fazendo tudo errado, que não lutei pelo meu filho o suficiente. Que a culpa é minha — pontua.
"Eu engravidei e os médicos falavam que eu ia perder"
Para Eunice Kûnzer, a gravidez e a maternidade sempre foram um sonho. No entanto, desde os 15 anos, ouvia de médicos e profissionais da área da saúde que nunca conseguiria engravidar. Ela conta que, por um tempo, chegou a fazer tratamento com medicamentos para tentar auxiliar na fertilidade.
— Engravidei e os médicos falavam que eu ia perder. Eu tinha lido que, se passasse das 25 semanas de gestação, o bebê sobreviveria. Eu cheguei às 28 semanas. Minha filha, Sofia, nasceu extremamente prematura, com 37 centímetros e 1,1kg — conta.
Assim que a filha nasceu, precisou ficar na incubadora para poder desenvolver os órgãos em um ambiente seguro. No entanto, já no segundo dia de vida, começaram as complicações de saúde: primeiro uma gripe, depois uma pneumonia e, mais tarde, uma hemorragia pulmonar.
— A pediatra falava que, toda vez, era como uma surpresa: poderia ser boa ou ruim. Quando a Sofia teve a hemorragia, ela falou exatamente isso.
As palavras da médica tiveram um impacto muito grande para Eunice. Mais tarde, quando precisou ficar internada em função de uma bolsa rota, outra vez, as palavras de um médico a assustaram. Dessa vez, o médico informou que a filha precisaria nascer extremamente prematura e que Eunice precisaria ficar internada.
— Nos três dias de internação, fiquei isolada, incomunicável, não me deixaram ficar com celular, nem meu marido entrar no quarto, não me davam notícia nenhuma. Na hora dá um choque. Eu precisei organizar minhas ideias para conseguir ficar bem — explica.
Ainda falta cuidado nos ambientes hospitalares
A psicóloga e representante da campanha em Caxias, Michele Bueno, viveu na pele a dor da perda gestacional. No caso dela, o parto seria no último dia 5 de maio.
— Eu sou mãe de uma menina e eu e meu marido sempre imaginamos ter dois filhos. Quando decidimos engravidar, no início de 2022, comecei a me preparar. Em dois meses de tentativas, veio o resultado positivo que esperávamos — conta.
Ela explica que, pouco depois da descoberta da gravidez, passou por um sangramento. Por isso, realizou exames que atestavam que estava tudo bem com o feto. Alguns dias depois, quando completou dois meses de gestação, em outro exame, o resultado foi diferente: o feto já não tinha mais batimentos cardíacos.
— Eu passei pelo procedimento de Aspiração Manual Intrauterina (Amiu). É um processo muito doloroso, tanto física quando psicologicamente. Foi muito difícil lidar com essa perda, ainda mais que fizemos tudo certo, nos preparamos — lamenta.
Ela conta que nos ambientes hospitalares ainda não existe um atendimento humanizado para esses casos. Ela explica que as mães passam por experiências difíceis, afinal, mesmo tendo perdido o bebê, as mulheres ficam na ala materno infantil, onde também estão as mães com filhos saudáveis.
— É difícil de lidar, a gente vê as mães. Estamos sofrendo pela nossa perda e ouvimos o choro dos bebês das outras mães, elas iniciando o processo de amamentação. Precisamos evoluir muito nisso.
Programação do Maio Furta-cor em Caxias do Sul
:: 13/5, às 13h30min — Marcha Maio Furta-cor, partindo do Instituto Quindim e dando a volta na Praça Dante Alighieri
:: 13/5, das 15h às 17h30min — Feira de mães empreendedoras, com oficinas culturais e artísticas para adultos e crianças, no Instituto Quindim
:: 18, 19 e 25/5, das 8h às 10h — Capacitação das equipes de saúde das UBSs sobre rastreamento psicológico perinatal, no auditório da Secretaria da Saúde de Caxias do Sul
:: 20/5, das 9h30min às 11h30min — Grupo terapêutico de Mães MaternaSer, no Instituto Materno Infantil
Programação de lives do Maio Furta-cor
:: 11/5, às 19h30min — “Humanização no atendimento ao pré-natal obstétrico e saúde mental materna”, com Fernanda Oliveira Castilhos, ginecologista e obstetra
:: 15/5, às 19h30min — “Atendimento Humanizado no Parto e Puerpério e saúde mental materna”, com Fernanda Ferraro Susin, ginecologista e obstetra
:: 17/5, às 20h — "A cura dos registros traumáticos através da microfisioterapia e da psicologia em casos de perdas gestacionais", com Melina Faggion Dani, fisioterapeuta e microfisioterapeuta
:: 18/5, às 20h — “Relação entre saúde mental materna e nutrição”, com Sabrina Orlandin, nutricionista materno-infantil
:: 22/5, às 19h — “Atuação da doula e sua influência na saúde mental materna”, com o Coletivo de Doulas Conectar
:: 25/5, às 19h30min — “A influência da saúde mental materna na saúde integral das crianças”, com Marcelo Saldanha, pediatra