Os primeiros registros da chegada de imigrantes à Serra gaúcha datam de 1875 em Nova Milano, no atual município de Farroupilha. Desde então a região nunca parou de receber pessoas vindas de diferentes estados e países à procura de uma nova vida. Na última década, no entanto, nunca se viu tantas pessoas de tantas nacionalidades em Caxias do Sul e municípios vizinhos.
De acordo com a prefeitura do maior município da Serra, já são 32 as nacionalidades que compartilham dos serviços públicos e buscam aqui uma realidade diferente daquela vivida em seus países de origem. Vindos da América do Sul, África e Oriente Médio, a maioria dos imigrantes chega a Caxias do Sul sem domínio da língua portuguesa e sem saber por onde começar a se estabelecer na cidade.
De forma individual ou acompanhados pelas famílias, os movimentos migratórios diferem quanto à nacionalidade do imigrante e ganham padrões, constatados pelo Centro de Atenção ao Migrante (CAM). Instalado no bairro Santa Catarina, o CAM cresceu junto da vinda constante de imigrantes a Caxias e hoje trabalha com demanda represada de pessoas que agendam atendimento para daqui a três meses.
— A maior demanda é por regularização migratória, emprego e entendimento de questões trabalhistas — explica o advogado especialista em imigração, Adriano Pistorello.
Gerido pela Congregação Scalabriniana, o CAM dá seguimento à missão que surgiu para acolher os imigrantes italianos que aqui chegavam e cresceu junto às demandas por garantia de direitos e suporte jurídico. Hoje o centro conta com setor de empregabilidade e ministra cursos profissionalizantes principalmente para a área da indústria. Além do suporte, afina o contato com outros setores da sociedade para acolher e principalmente entender o papel do Estado no acolhimento aos povos.
— Temos uma reunião mensal com o Ministério Público Federal (MPF) que trata dos acessos à saúde e educação. Não é só inserir, é preciso acompanhar crianças da Venezuela, por exemplo, estão fora da escola há muito tempo e é preciso pensar em toda uma política pública especial — conta Pistorello, que desde a chegada dos primeiros imigrantes, vindos principalmente do Haiti, acompanha as mudanças no padrão imigratório em Caxias do Sul.
Segundo ele, no início de 2012 o movimento era, na grande maioria, de homens solteiros que vinham como força laboral para o Brasil. Além de haitianos, Caxias do Sul passou a presenciar um fluxo intenso de senegaleses que só depois de regularizados e estabilizados buscavam a família.
Diferente do movimento de casais que chegam da Venezuela, que estão acompanhados dos filhos e são distribuídos ao interior do país em uma estratégia do governo federal. De acordo com dados do Ministério da Cidadania, a Operação Acolhida registrou 78.767 venezuelanos interiorizados em 844 municípios brasileiros entre abril de 2018 e junho deste ano. Só no Rio Grande do Sul, foram 11.806 até maio de 2022.
Entre eles está a família Gonzalez, que de Boa Vista, em Roraima, na porta de entrada dos venezuelanos ao Brasil, embarcou em 2017 em um avião para Pelotas. Com a esposa Cristina, 26 anos, e o filho Cristian, na época com sete meses, o dentista Jomar González, 26, tentou a vida no sul do estado, mas foi em Caxias, há dois anos, que se estabeleceu.
— Eu era rico e nem sabia, tínhamos firmas e vendemos tudo para vir com a roupa do corpo. Uma pessoa de classe média na Venezuela não teria nem chegado à fronteira com o Brasil —contou González que foi a Pelotas com o dinheiro que ganhou no trabalho como dentista em Boa Vista.
A escolha por Caxias do Sul se deu pelas indústrias aqui instaladas, mas a estada em três cidades diferentes mostrou ao venezuelano quão vasta pode ser a cultura brasileira.
— Foi difícil me adaptar às culturas internas do Brasil. Tenho amigos que vou levar para o resto da vida que são caxienses, mas a cultura daqui é bem conservadora, muito mais que a de Pelotas — citou.
Atualmente sem emprego, González já foi pedreiro, marceneiro, lavou carros e trabalhou em um frigorífico. Com português fluente, gostaria de validar seu diploma para atuar como dentista no Brasil, mas as contas mensais apertam o orçamento.
— A gente luta e trabalha diariamente pra mostrar que podemos vencer como estrangeiros. Hoje Caxias é minha casa — afirma o venezuelano que quando pode manda dinheiro aos familiares na terra natal.
— Enquanto a gente come arroz e feijão três vezes por dia, eles comem três vezes por semana lá — contou.
Por isso, e também com a chegada do segundo filho, o chefe da família Gonzalez não pensa em voltar. Nascida em Caxias do Sul a bebê de dois meses ganhou o nome da mãe, Cristina, que na Venezuela estudava medicina e aqui trabalha na área da nutrição da Unimed. E não aumenta só a família, mas o número de venezuelanos que faz do Brasil, seu novo país.
— Hoje Caxias é nossa casa, já não é mais uma “pousada”. Sair daqui, nem que a Venezuela mude de presidente, porque o período de voltar à estabilidade lá é muito a longo prazo —contou.
São inúmeros os desafios apresentados ao estrangeiro que chega a Caxias do Sul. Da regularização dos documentos à busca por moradia, é preciso se relacionar, saber quais caminhos trilhar e a quem recorrer. O Centro de Atendimento ao Migrante auxilia no que pode, desde que a pandemia começou, a distribuição de cestas básicas passou de 40 para 200 por mês. Mas para além da dificuldade em se manter, o CAM percebe a dificuldade que o imigrante tem de se integrar a comunidade local.
O advogado, que já atendeu centenas deles na cidade, diz conhecer poucas histórias de pessoas que se integraram. Para Pistorello, não há apenas um motivo, e a torcida é para que isso mude ao longo dos anos.
— Tem um pouco da barreira social, ainda há preconceito e também o núcleo de integração próprio entre eles da mesma nacionalidade — listou.
Em 2019, o turco Salih Yuce, 33, quebrou essa barreira quando trabalhava como motorista de aplicativo. Em uma viagem curta da Rua Marechal Floriano até o bairro Vila Verde, uma amizade fez aumentar a família da podóloga Elenamares Silveira da Silva, 55.
Ele me perguntou se era conveniente para mim ser a mãe de coração dele no Brasil
ELENAMARES SILVEIRA
Caxiense que "adotou" juntamente com a família o turco Salih Yuce
No carro com a filha Bianca Silveira, 25, Elenamares não compreendia muito bem o que o motorista falava. Foi só no dia seguinte, quando Yuce voltou à loja onde ela trabalhava que os dois puderam se entender e a vocação da caxiense em acolher o próximo pôde mais uma vez ser colocada em prática.
— Ele me perguntou se era conveniente para mim ser a mãe de coração dele no Brasil—contou Elenamares que já sabia a resposta, mas era preciso consultar a família antes.
— Trouxe espanto, mas não estranheza, porque é da natureza dela ajudar as pessoas — explicou o marido Marcos Antônio da Silva, 55, que há três anos também é chamado de pai pelo filho turco.
Distante da Turquia por discordar do atual governo turco, Yuce já morou na Índia e há quatro anos vive em Caxias do Sul. Com a ajuda de conterrâneos e sob os conselhos da família brasileira, é hoje proprietário de um restaurante de comida típica no bairro São Pelegrino.
— Eu estava muito sozinho aqui, procurava um amigo para a adaptação ser mais rápida. Deus mandou para mim uma família, eu aprendi mais rápido o idioma, e a vida ficou mais fácil — contou o empresário ao lado da mãe, que garante não o sentiu como um estranho.
— Eu senti ele como um filho. No início não achamos que seria tão sério, aos poucos criamos vínculo e agora ele faz parta da família — disse.