As equipes de enfermagem de Caxias do Sul que trabalham nas unidades básicas de saúde (UBSs) não podem mais requisitar alguns exames ou prescrever alguns remédios a pacientes. As mudanças têm impactado principalmente o atendimento de mulheres, gestantes e mães de crianças pequenas. Implantado em 2019, o protocolo da enfermagem foi modificado pela atual gestão municipal.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que "há um crescente da população mais idosa e de portadores de doenças crônicas, agravado pela pandemia da covid-19 e suas sequelas. As filas crescentes nas UBSs nessas áreas e nos serviços de urgência preocupam e requerem medidas. A gestão municipal optou por concentrar a intervenção de consultas de enfermagem nesse grupo e, até março de 2022, serão instituídos protocolos específicos para o enfermeiro com classificação de risco e atendimento de adultos e idosos" (leia a nota completa abaixo).
No entanto, quem precisa de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) está insatisfeito e questiona as mudanças. É o caso de Priscila Borges Moreira, 28 anos. Ela é mãe de Aylla Borges Lima, de um ano e sete meses, e está grávida de duas semanas. No pré-natal de Aylla, Priscila fez o exame de gravidez e, como o resultado foi positivo, já saiu da UBS com a requisição de todos os exames necessários para quando consultasse com o ginecologista.
— Era mais prático porque, antes, eu saía da UBS com todas as requisições. Com essa mudança, tive que voltar para o posto de saúde, enfrentar a fila outra vez, sendo que as enfermeiras teriam resolvido. Mudou algo que funcionava — avalia.
Marilene de Barros Gaia Diniz, 24, mãe de Marcos Ezequiel, seis, mora com a família há três anos em Caxias do Sul. Grávida de 16 semanas, a jovem foi uma das últimas gestantes a ser atendida e ter exames prescritos pela enfermeira.
— A enfermeira me atendeu e fez o exame que confirmou a minha gravidez, fez todos os testes rápidos que são necessários na gestação e me passou a requisição de exames e do ultrassom. Eu cheguei e consultei rápido. Agora, com essa mudança atrapalha porque demora mais para conseguir consultas se precisar de exames, se tem que esperar por ginecologista — aponta.
Perda de autonomia se reflete no atendimento
As enfermeiras ouvidas pela reportagem afirmam que a alteração nos protocolos impacta no atendimento porque elas perderam autonomia e precisam repassar questões mais simples e que poderiam resolver de imediato para um médico, que nem sempre está disponível. As profissionais não podem mais solicitar exames como ecografia no pré-natal. Tampouco têm autorização para prescrever medicamentos para alívios de náusea ou cólicas em gestantes ou de analgésicos para dor ou febre em crianças.
— As UBSs não têm o quadro médico completo e, em muitos casos, temos que pedir que as pacientes voltem outro dia para solicitar os exames ou transferir o atendimento para outro posto — diz uma enfermeira de 40 anos, que prefere não se identificar.
Para elas, as mudanças prejudicam os pacientes:
— A gente podia acolher as demandas diárias dos pacientes que vinham com queixas agudas daquele momento. Nos tiraram a autonomia de ser resolutivo, de atender uma criança, fazer o exame físico, dar o vermífugo, o paracetamol pra mãe ter sempre em casa. Não podemos mais fazer isso. Com as gestantes, a mesma coisa, não podemos mais pedir os exames de rastreio que são rotina durante a gestação e estão listados no protocolo.
Por exemplo, a equipe ainda faz testes rápidos de sífilis, mas se o resultado, que sai na hora for positivo, não pode mais aplicar a primeira dose da medicação para que o paciente comece o tratamento.
— Agora não, a gente faz o teste e se o resultado é positivo temos que dizer para a pessoa voltar outro dia, na fila, para marcar uma consulta com o médico e, daí, começar o tratamento. Às vezes, essa pessoa nem volta mais. São coisas que nós podíamos resolver, que são simples e que faziam com que o atendimento fosse mais rápido.
Outra profissional que atua há 11 anos na saúde pública também não entende a mudança:
— Conseguíamos resolver alguns problemas dos pacientes. Agora, sem poder atuar em procedimentos simples como esses, aumenta a demanda de consultas — lamenta a enfermeira.
Conselho de Saúde pede revogação das mudanças
A alteração é criticada pelo Conselho Municipal de Saúde de Caxias do Sul. De acordo com o presidente do conselho, Alexandre Silva, a medida foi uma surpresa aos conselheiros, enfermeiros e pacientes da cidade. Os conselheiros aprovaram uma resolução contrária à alteração.
— É um retrocesso total a revogação dos protocolos de enfermagem que estavam vigentes, e que estão implantados em diversas cidades, como Bento Gonçalves e São Marcos. O município, de forma autoritária, sem consultar o Conselho de Saúde, que representa os pacientes, sem submeter ao Coren (Conselho Regional de Enfermagem), que é quem representa os funcionários, modificou o atendimento — declarou Silva.
Na mesma plenária foi recomendada, de forma unânime pelos Conselheiros de Saúde, a revogação das alterações dos protocolos de enfermagem implantados em 2019 e homologado pelo Coren/RS. Também ficou decidido que seja formada uma comissão de enfermagem para avaliação e atualização dos protocolos.
— A partir das diretrizes do Ministério da Saúde e de experiências municipais, sabe-se que a atuação do enfermeiro a partir da implantação dos protocolos traz mais segurança para o profissional, usuário e serviços de saúde porque têm direcionamento das condutas conforme novas evidências científicas e recomendações do Ministério da Saúde. O nosso principal objetivo é melhorar o acesso e a resolução das demandas trazidas pelos usuários.
Coren também critica revogação dos protocolos
O Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS) lembra que, na época da implantação, representantes da entidade estiveram no município tirando dúvidas da enfermagem e reafirmando o respaldo da categoria para atuar nas UBSs. Ainda, segundo a entidade, a enfermagem tem plena capacidade técnica e respaldo legal para atuar prescrevendo medicamentos e solicitando exames, conforme preveem tanto a legislação relativa à categoria quanto os protocolos.
O que diz a SMS
Por nota, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirma que:" tem por missão atender a população nas suas necessidades, sempre com critérios de prioridades e vulnerabilidade. Neste sentido, reconhece o papel do enfermeiro como um recurso humano valioso e de impacto na atenção à saúde da população, inclusive, solicitando exames e prescrevendo medicações conforme protocolos estabelecidos pelos municípios em consonância com o Ministério da Saúde e Conselho Federal de Enfermagem (Coren). Porém, como recurso humano estratégico, é fundamental que sua inserção se dê em áreas de maior risco populacional ou demanda em cada local. Dentro do escopo de possibilidades autorizadas pelo Coren e Ministério da Saúde, cada município define como e em que áreas o enfermeiro prescreverá e solicitará exames. Em Caxias do Sul, a atenção do enfermeiro estava centrada nas áreas da saúde materno-infantil, estas de menor vulnerabilidade pelos indicadores de saúde locais, as taxas de mortalidade infantil (até um ano de idade) encontram-se ao redor de 10 casos por 1 mil nascidos vivos, chegando a 7,96 óbitos por 1 mil nascidos vivos em 2020 (níveis excelentes para um país no nível de desenvolvimento do Brasil). O número de nascidos vivos diminui progressivamente em Caxias do Sul (somente entre 2018 e 2020 o número de nascidos vivos caiu de 5.765 para 5.526 crianças, uma queda de 4,1%). Menos de 1% das gestantes do município não acessam pré-natal (mais de 99% realizam pré-natal, sendo que mais de 80% com sete consultas ou mais). O número de casos de sífilis congênita caiu entre 2018 e 2020 de 91 para 54 casos (-40,6%). No entanto, há um crescente da população mais idosa e de portadores de doenças crônicas, agravado pela pandemia da covid-19 e suas sequelas. As filas crescentes nas UBSs nessas áreas e nos serviços de urgência preocupam e requerem medidas. A gestão municipal optou por concentrar a intervenção de consultas de enfermagem nesse grupo, e até março de 2022 serão instituídos protocolos específicos para o enfermeiro com classificação de risco e atendimento de adultos e idosos. Importante salientar que o enfermeiro continua inserido no pré-natal solicitando testes rápidos para HIV, hepatites e sífilis, bem como teste diagnóstico de gravidez, exames para infecção urinária, tuberculose e teste de covid. Pode ainda prescrever medicamentos como ácido fólico, sulfato ferroso e tratamento de vaginites, dentre outros, solicita mamografias e coleta o exame citopatológico do colo uterino (preventivo de câncer). A participação dos enfermeiros com consultas na área de puericultura foi mantida no cronograma de acompanhamento da criança (primeiros dias de vida, terceiro, quinto e sétimo meses de vida), com prescrição de medicamentos e solicitação de exames (dosagem de bilirrubinas para casos de icterícia neonatal). Tem, assim, a sua inserção assegurada e reconhecida no pré-natal e puericultura (atendimento no primeiro ano de vida). Salientamos ainda o reconhecimento do importante papel do enfermeiro na promoção e prevenção em saúde".
Conselho Regional de Medicina é favorável às mudanças
O Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) é favorável às mudanças. Em 2019, a entidade havia se posicionado contra a implantação do protocolo que permitia que a enfermagem requisitasse exames ou prescrevesse medicamentos. O presidente do Cremers, Carlos Isaia Filho, ressalta que o diagnóstico de doenças e a prescrição de medicamentos são atividades exclusivas do médico:
— Claro que o médico não trabalha sozinho e existe toda uma equipe de saúde por trás, o que torna o que a gente chama de equipe multidisciplinar, o importante é que cada profissional desses fique trabalhando dentro das suas competências — ressalta ele.
Ainda conforme o presidente, no caso específico da enfermagem, existe alguns protocolos do Ministério da Saúde que habilitam o enfermeiro a enfermeira a fazer algumas condutas, mas não incluem diagnóstico e terapêutica.
— Então, essa medida que foi tomada aí em Caxias está dentro dos conformes das estratégias dos protocolos existentes. Não se exclui a atividade da enfermagem, muito pelo contrário, mas desde que estejam dentro das competências de cada profissão. Vai de acordo com as atividades de enfermagem porque quando um extrapola a atividade do outro quem pode perder é o próprio paciente — acredita ele.